Teatro Mágico

O pequeno cachorro trazia um cone na cabeça o que tornava a cena ainda mais bizarra naquela manhã de terça-feira. Enquanto caminhava sob o céu azul tingido de branco por poucas nuvens brancas rarefeitas, ele observou com naturalidade o excremento deixado aos poucos no passeio pelo animal que, distraído, pouco se importava com os transeuntes, aliviando ali mesmo seus intestinos e deixando os pequenos círculos negros que possivelmente seriam esmagados por um sapato qualquer enquanto seu dono gritava algum desaforo.

O sol morno da manhã lhe dava conhecimento de sua pele, que apenas era sentida em maior relevância pelo calor do que ele sabia vir uma bola de fogo a explodir há anos luz de distância e que algum dia deixará de existir, fazendo que com se extinga qualquer possibilidade de vida na Terra.

E enquanto um passo era seguido pelo outro, os pássaros voavam e o cachorro deixava no cimento suas fezes frescas, ele ouvia o bzzz vindo da linha de transmissão nos postes acima de sua cabeça. É impossível não se espantar com o tanto de tecnologia que foi criada pelo homem e como mesmo assim, mesmo depois de conseguir transformar água em calor multiplicando sua capacidade energética, criar vacinas e medicamentos aumentando significativamente a expectativa de vida de toda a espécie e multiplicar grãos e alimentos, era incapaz de promover uma divisão mais cômoda de todos esses recursos.

Um misto de esperança e de descrença tomava sua cabeça enquanto caminhava e resolveu acender um cigarro, sua muleta diária para momentos de confusão mental. Feliz era o cachorro, isso sim! Desprovido de dilemas morais, pouco se importava para todas as nossas convenções e livre de nossas regras de etiqueta podia andar por aí nu e deixar em cada canto um pedaço de si na hora que bem lhe aprouvesse. Não pode deixar de rir-se ao imaginar todos, homens e mulheres, andando sem vestes agachando-se em cócoras sempre que a natureza os chamassem. E seus restos seriam pisados com pés descalços. Seu rosto repuxou enquanto imaginava o calor entrando por entre os dedos e o odor que era exalado enquanto o creme espesso e quente envolvia toda a sola e peito dos pés.

Mais uma baforada em seu cigarro fedorento e seu pensamento mudou de rumo, fugindo da imagem desagradável que ele mesmo havia criado em sua cabeça. Tudo e nada. Tudo e nada acontecia ao mesmo tempo em todas as partes do mundo. Seus pensamentos eram embalados pela música que entravam em seus ouvidos através dos fones pontiagudos. A maravilha da trilha sonora que tinha apenas para si, servindo de fundo para seu filme particular.

Lembrou com certa amargura que há muito tempo que o filme de sua vida não tinha nada de épico, destoando e muito da música que embalava a sua caminhada e que, permeada de tambores e tímpanos, era digna de uma batalha medieval ou um ato qualquer de heroísmo.

Pensava consigo que talvez tivesse errado o caminho. Talvez tivesse deixado a vida ficar morna e que havia sacrificado as grandes pulsões em nome de uma felicidade pacata e sem sobressaltos. A paixão que havia se transformado em amor benfazejo já não trazia os sobressaltos do início e agora apenas o que lhe restava era a paz da companhia que o compreendia e o pedia para buscar pão todas as manhãs. Todo o resto havia seguido o mesmo rumo. Morno. Plácido. Calmo.

O fim do mundo que chega para cada um de nós, com a morte inevitável, é o gran finale do filme que decidimos encenar. O cigarro chegou ao fim e foi arremessado ao lado dos pedaços de cachorro que jaziam sobre o negro do asfalto sujo enquanto ele se perguntava se tinha escolhido o roteiro da sua vida ou se este havia simplesmente surgido, como consequência de escolhas inconscientes e banais.

A música chegava a seu ápice e com amargura ele sentiu saudades das lutas que não lutou, das aventuras que não teve. Sentiu saudades do sexo descompromissado e das pessoas que nada significavam para si. O desconhecido da boca nova. O arrepiar dos cabelos da velocidade em uma estrada que não conhecia enquanto dirigia com a cabeça cheia de álcool. O estupor da droga que não experimentou.

E naquela fração de segundos ele travou batalhas, matou inimigos e dormiu com as mais belas mulheres. Dormiu também com homens e com animais. Experimentou as mais escabrosas orgias levando ao extremo todas as pulsões que o habitavam. Tocou todos os instrumentos e as mais belas músicas. Comeu todas as comidas que nunca experimentou, as mais deliciosas e as mais horríveis. Sofreu todos os tormentos e as maiores alegrias. Pulou de todos os penhascos e morreu centenas de vezes das mais variadas formas.

Sentiu todas as dores e chorou todas as saudades. Visitou cada célula de seu corpo e abraçou cada mitocôndria desavisada. Sentiu cada centímetro de seu intestino, cada fio de cabelo em sua cabeça e quando deu por si experimentou na boca o gosto salgado de uma lágrima furtiva que escapou-lhe do olho direito.

E percebeu que não se arrependia de seu roteiro. É fácil sentir saudades do que não há ou nunca houve. Difícil mesmo é tirar gozo da rotina. Fazer rolar inúmeras vezes a mesma pedra morro acima e ainda assim encontrar beleza e surpresa pelo mesmo caminho já tão conhecido. Concluiu consigo que a condição humana é bela, mas trágica e despertado pela atendente, disse bom dia e sorriu enquanto pedia três pães.

A maior tragédia humana é - e sempre será – a sua própria efemeridade.

Bianca Liberti
Enviado por Bianca Liberti em 21/01/2021
Reeditado em 27/01/2021
Código do texto: T7164862
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