Reforma

E Essème foi enquadrado. Sua esposa finalmente podia contabilizar e saborear essa vitória temporária.

Essème trabalha muito. É pessoa que representa autoridade e comanda parcela importante de instituição estatal. Tem como característica pessoal dedicar-se com afinco ao seu trabalho, e assim o faz, dando grande empuxo aos seus assuntos profissionais. Não se permite descanso e sua agenda está sempre totalmente voltada à produtividade acima da média, e mesmo acima da reflexão responsável. Subalternos e funcionários de órgãos auxiliares estão acostumados com seu ritmo e também se movem com esforço e toda a sua máquina, por assim dizer, opera a todo o vapor.

Mas Essème é provinciano. Descende de família de imigrantes que fizeram parte do movimento de povoar tantas colônias mundo afora em séculos passados, o movimento imigratório característico de quem se estabelece no campo e vai subsistir da agricultura e daí fazer o seu viver. Essème não tinha o espírito empreendedor de seus antepassados, mas era perspicaz e aluno bem aplicado. Seus estudos na cidade foram bem sucedidos e o fizeram ter êxito em concursos públicos e o levaram à atual posição importante na sociedade.

Sua família vem de um povo alegre e de fácil convívio, porém Essème herdou o ranço de provincianismo que lhe confere o ar de antiquado e obsoleto, talvez por isso resistisse tanto às ideias de modernização que sua mulher queria implementar na sua residência, afinal um assunto tão corriqueiro. Sua vaidade era muito mais voltada para a narcísica supervalorização dos seus méritos pessoais do que o conforto material que um “home theatre” pudesse proporcionar. Aliás, nem gostava de perder seu tempo com entretenimentos e mesmo passatempos culturais. Tudo o que necessitava era do seu soturno escritório onde passava horas estudando os assuntos da agenda dos dias seguintes e tomando decisões que, como sempre, influenciavam a vida de dezenas de pessoas.

Desde que eles se casaram moravam no mesmo apartamento, era grande, é verdade, e com uma boa planta, mas carecia das facilidades da vida moderna e do conforto que a tecnologia domiciliar trazia para o regozijo dos seus habitantes. Os filhos já estavam adolescentes e para eles também havia necessidades especificas a serem atendidas. Nada demais, na verdade, todos os amigos do casal já haviam passado por situação semelhante e as conversas entre as madames sobre as tendências de decoração sempre foram inevitáveis e recorrentes.

Essème é que não dava muito valor para esse tema, achava mesmo quase supérfluo, e até então sempre encontrava uma maneira de postergar os planos modernizadores da esposa. Só que desta vez foi diferente, ela insistiu com uma bem preparada e grande lista de motivos, teve o fundamental apoio dos filhos, defendeu com tenacidade todos os aspectos daquele empreendimento para o bem-estar da família. E Essème houve por bem concordar.

Felicidade na família, almoço especial de domingo. E foi assim que se deu o bater de asas da borboleta.

Já no dia seguinte sua esposa estava a promover o contato com a arquiteta. Marcou encontro em sua casa e, muito animada, buscava saber das nuances da empreitada. Entre chás e biscoitos, discutiram conceitos domiciliares, necessidades da família, as tendências da arquitetura e da decoração de interiores, os aparelhos eletrodomésticos mais modernos, a tecnologia de materiais e os novos e extraordinários revestimentos e as maravilhas da iluminação: “iluminação é tudo!”, elas compartilhavam. Em um par de horas um novo mundo de conforto, praticidade e beleza se descortinava.

Com certa alegria e contentamento, marcou com Essème uma reunião com a arquiteta em casa, onde iriam mostrar o que havia sido discutido até então e daí deliberar sobre algumas escolhas que precisavam de decisão. A reunião transcorreu com entusiasmo por parte da arquiteta e da esposa. Essème também passa a gostar do tema, mas na medida daquilo que depende das suas definições. Estudos conceituais apresentados, anteprojetos, alternativas para retirada de paredes e instalação de novas divisórias, mudança de ambientes, modernização das áreas de serviço. Essème deteve-se com especial atenção no seu escritório, um ambiente que ele queria inspirado em Archon Basileus, de quem era admirador. Uma encomenda sua especifica. Após três horas de animada conversa, apesar de exaustiva, a arquiteta se retira com a incumbência de compilar todos os assuntos debatidos em um projeto para aprovação afinal. Sem dúvida havia sido uma profícua reunião. Já a sós, Essème comenta que agora sentia mesmo que a reforma iria acontecer, que havia gostado da arquiteta, e pergunta à esposa como ela havia sido contratada, se havia tido uma concorrência. A esposa respondeu que não, que a havia contratado diretamente, baseado em indicação de amigos que já haviam contratado com ela e reportaram satisfação com o seu trabalho.

Essème, então, pela primeira vez demonstra contrariedade e expõe que, com uma concorrência, eles poderiam ter uma prestação de serviço do mesmo nível e despendendo um valor menor. Sua esposa argumenta que eles estavam pagando valores de mercado, com uma profissional com boas referências, sem o risco de ter alguém a seu serviço com a competência desconhecida, e que estava satisfeita com o desenvolvimento do projeto até aqui. Essème ainda comentou que ele considerava efetivamente um prejuízo a diferença para um eventual menor preço, mas como era a esposa que estava à frente de todo o empreendimento preferiu não desenvolver a discussão e deixar a vida seguir (ah! mas aquele prejuízo...).

E o projeto foi finalizado e apresentado. Com mais uns ajustes aqui e ali e, pronto! Ficou lindo. Feito na ferramenta CAD (Computer Aided Design), aquelas impressões de ambientes em vistas de três dimensões eram muito bonitas, um deleite para os olhos. Davam a noção exata de como tudo ia ficar. Satisfação do cliente. O projeto era completo, com a parte técnica detalhada, as plantas de demolição e construção, o encaminhamento das novas instalações elétricas e hidráulicas, e todos os dimensionamentos necessários à execução da obra. E, com efeito, já se dava andamento ao planejamento da fase executiva da reforma com a contratação da equipe.

O mestre de obra mostrou larga experiência naquele tipo de trabalho, nada havia ali que trouxesse qualquer tipo de dificuldade. Faziam parte da sua equipe todos os profissionais necessários à parte da obra civil, pedreiros, serventes, encanadores, eletricistas, gesseiro, carpinteiro, e ele forneceria o chamado material bruto, cimento, areia, tijolos, fiação, conduites, tubos e conexões, o manuseio do entulho de obra e seu descarte, tudo fazia parte do seu escopo. Não havia bola dividida, estava tudo muito bem definido.

Essème, um dia ao chegar mais cedo em casa, encontrou e conheceu o mestre de obra que estava, com dois auxiliares, procedendo a algumas medições para planificar as atividades executivas. Essème abordou alguns aspectos e dúvidas sobre a execução dos serviços e ficou impressionado com a sua praticidade e experiência.

Por conta do casal ficariam o custo do material de acabamento, metais, pisos e revestimentos, equipamentos, marcenaria, projetos especiais para cozinha e área de serviço, mobiliário, luminárias, e todo o conjunto de artigos de decoração que dariam o toque de personalidade e beleza para a tão sonhada e merecida morada. Acertaram com a arquiteta para que ela administrasse a obra, fizesse os dimensionamentos e especificações ainda necessários, por um percentual do custo, tudo dentro das práticas de mercado. A arquiteta apresentou planilha para o acompanhamento de todo o empreendimento. E mostrou como seria entregue um “book” do projeto “conforme construído” para futura referência. Perfeito. Nada havia de dar errado.

A esposa havia proposto a Essème que a família se mudasse temporariamente durante o período, para que o apartamento ficasse completamente livre para a reforma, mas Essème resistiu muito à ideia. Não seria possível que eles fizessem a obra sem que eles saíssem? Possível era, apesar do grande inconveniente para os moradores, que teriam que se mover dentro do apartamento conforme o andamento dos serviços. Depois de muita discussão, Essème não abriu mão do seu querido lar e decidiram que a obra iniciaria sem que eles se mudassem. Seria necessária tão somente uma planificação com um pouco mais de acuidade e uma certa extensão de prazo. Nenhum problema, todos já haviam demonstrado experiência e competência suficientes, não era verdade? Caso decidissem ser imprescindível, fariam esse movimento posteriormente. Mãos à obra!

Todavia, sem ninguém saber ao certo a razão, ficou uma certa tensão no ar. Um campo elétrico no limiar de causar eriçamentos.

Enquanto se dá a mobilização para o inicio de obra, material bruto chegando, caçambas a postos, a arquiteta especifica e quantifica diversos materiais de acabamento que precisam ser comprados. É indispensável que se vá a uma ou mais lojas do ramo e despender algumas horas nesta faina. A esposa pede a Essème que as acompanhe nessas compras, é muito importante e ela não quer ficar com a responsabilidade sozinha. Essème é um individuo chato para algumas coisas, e vai que ele não goste da cor da lista decorativa do azulejo do banheiro da área de serviço. Não! Ele precisa estar presente nem que não dê nenhum “pitaco” sobre nada. Ela insiste. A agenda de Essème é muito carregada, como sempre, mas ele não consegue livrar-se da demanda conjugal e só lhe resta reprogramar algumas audiências.

Os três encaminham-se à loja sugerida pela arquiteta, uma das melhores da cidade, lá eles devem resolver quase tudo o que for preciso. Previamente informado, o vendedor que os recepciona, conhecido da arquiteta, lhes dispensa especial atenção. Tudo já está organizado para mostras e demonstrações. Cafezinhos e águas. Cortês e obsequioso o vendedor vai mostrando toda a operação de venda sob a preferência e seleção dos clientes e supervisão da arquiteta. Pacote fechado, totalizações, descontos negociados e parcelamento do pagamento, datas de entregas agendadas, tudo funciona perfeitamente. Foi caro, mas está dentro do orçamento. Como é bom contratar serviços e fornecimentos com gente competente.

Apesar daquela tarde ter sido cansativa, há a sensação dos afazeres que chegam a bom termo e a satisfação de ter cumprido um importante evento. Essème compartilha do contentamento e sente o impulso de convidar a esposa e a arquiteta para um lanche num lugar aprazível. O dia proveitoso merece um desses pequenos prazeres que ele mesmo já não desfruta há tempos. É quase um êxtase que eles compartem. A esposa pensa em sugerir um espumante, mas prefere não arriscar. Está tudo indo tão bem. Observa uma expressão mais desanuviada no semblante de Essème, feliz.

Com tudo sendo providenciado a tempo e a hora e o cronograma marchando conforme previsto, chegou em muito boa hora o convite de casais amigos para um fim de semana no sítio. O lugar era muito bonito, ainda mais com o bônus da estação do ano – a primavera – que deixava os jardins viçosos e floridos. A casa era bonita e confortável. Mesmo não consumiria nenhuma energia a irrupção de um clima romântico. Por demais oportuno. As crianças ficariam em casa, suficientemente autônomos com a pequena supervisão da avó.

À noite, no jantar, uma saborosa refeição e um bom vinho, a conversa entre os casais fluía com bom humor e uma atmosfera serena. Essème e a esposa, principalmente esta, discorriam com entusiasmo sobre o seu projeto, como a planta ficaria e sobre a qualidade e estética das compras da véspera. A loja era realmente bem conceituada e o vendedor bem conhecido. Os outros casais já haviam trabalhado com a mesma arquiteta e passado pela mesma experiência de compras. Tudo funcionava com muita coesão e entrosamento. Era conhecida a parceria da arquiteta com o vendedor e a loja, ela recebia um percentual sobre a compra efetuada.

“Como assim?”, questionou Essème, assaz surpreso. Ora, ela apresenta os clientes e recebe uma comissão da loja sobre o valor da venda. “Mas ela já está sendo remunerada – e bem – pelo seu trabalho”. Sim, mas neste mercado é praxe ter este tipo de ganho adicional por conta de operações comerciais. Essème ficou muito incomodado com a revelação dessa verdade, não soube o que pensar no momento. Um estorvo importuno não lhe abandonou durante o restante do jantar.

Mais tarde, teve seu sono interrompido ao acordar de súbito e o assunto da arquiteta e do vendedor veio lhe ocupar a mente. Não conseguiu mais dormir. Refletia e a realimentação positiva dos pensamentos aos poucos lhe enchiam a cabeça de forma revoltosa. “Aquilo não estava certo”. Sentia-se ludibriado. Todo aquele mercado, afinal, estava sendo movimentado pelo seu dinheiro, dinheiro dele.

De manhã, no desjejum, Essème não se conteve e rebobinou o assunto da véspera, já profundamente indignado. A esposa, que bem lhe conhecia, tentou arrefecer seus ânimos. O fim de semana apenas começava e até agora tudo vinha bem. Mas não teve jeito. Com flagrante repulsa Essème passou a discursar que aquele ganho adicional da arquiteta era, na verdade da sua interpretação, uma vantagem indevida. Considerava aquela quantia um autêntico desvio dos seus recursos, ele é que deveria auferir aquele valor, como houvesse sido um sobre-preço a lhe ser roubado. O termo era forte, mas era como se sentia.

Os amigos bem que tentaram contra-argumentar dizendo que ele pagou valores de mercado, não houve superfaturamento, ele teve os descontos pertinentes em face do valor da compra, teve os parcelamentos para pagamento adequadamente concedidos e, afinal, aquele dinheiro pertencia, pois, à loja, era sua propriedade privada e ela podia dispor dele da maneira que melhor lhe aprouvesse. Se a loja quisesse fazer rolinhos com o dinheiro ele não tinha nada a ver com isso. Por fim, os custos do casal com o projeto estavam indubitavelmente adequados e conformes, e eles estavam bem atendidos, pois não?

Isso só fez subir a temperatura da sua indignação. O certo era o certo. E quem sabia interpretar o que era certo era ele, Essème, para isso havia vindo ao mundo, todo o mundo o sabia, e nem o Olimpo ousaria discordar da sua hermenêutica. E isso tudo não ia ficar assim. Não ia mesmo! A esposa colocou o rosto entre as mãos, viu por entre os dedos o prometido fim de semana se esvaindo. Pela segunda vez sentiu o campo elétrico no ar, mas desta feita como um prenúncio de consequências tempestuosas.

Nos dias seguintes ao retorno do fim de semana Essème estava disposto a fazer suas averiguações. Afastou-se das questões das obras e mesmo um pouco da sua esposa para não contaminar o seu exame preliminar sobre o caso. Já chamava o projeto de “caso”. Seu faro lhe dizia que esse angu não era cem por cento pastoso. Caroços havia. Lembrou-se que a contratação da arquiteta fora sem concorrência e ele já computava ali alguns prejuízos.

E lembrou-se que não fez o mesmo questionamento na contratação do mestre de obra, talvez inebriado naquele momento pela ambiência do projeto sendo gestado. Indagou à esposa e confirmou o que ele já desconfiava: a contratação do mestre de obra havia sido feita diretamente, também por indicação da arquiteta. Uma rápida consulta entre os amigos e ele de novo confirma outra suspeita. O mestre de obra também repassa um percentual para a arquiteta. Uma espécie de agenciamento. Ninguém era obrigado a contratar aquele mestre de obra especifico, mas o fazendo em função da indicação, também se praticava a comissão. Aliás, a arquiteta como administradora da obra era a responsável pelo pagamento dos servidores, ela mesmo já retinha a sua própria parte. Essème já ficava atônito com suas descobertas.

Essème precisava tirar a limpo o tema da loja e para lá se dirigiu. Encontrou-se com o vendedor e pediu a presença do gerente. Expôs o assunto da forma mais direta e dura acerca do que lhe havia sido revelado, meio que a exigir o crédito do percentual destinado à arquiteta, que aquele valor lhe pertencia, pois dele se originava. Com muito tato (Essème já era considerado cliente preferencial) o gerente alegava que as tolerâncias de negociação de descontos para o cliente lhe haviam sido concedidos, e a verba consignada para arquiteta vinha, na realidade, da margem do lucro da empresa. O gerente e o vendedor foram o mais sinceros que puderam para com Essème, procuraram dar-lhe satisfação para diminuir a falta de confiança que, afinal, é o valor subjacente de transações comerciais. Não imaginavam que pudesse haver alguma consequência no campo etéreo virtuoso do bem e do mal. Estão no mundo competitivo dos negócios legais. E assim lhe explicaram as nuances das práticas de mercado, normalmente aceita por todos. Nada havia de excepcional e desse modo também se operava com outros arquitetos, decoradores e outros profissionais deste mercado. “Outros?”, pensou um espantado Essème. “Por Zeus, onde estamos metidos”?

Ao retornar ao seu escritório Essème está decidido a abrir um procedimento oficial. Para ele há elementos suficientes e saberá interpretá-los à luz da sua especialidade. Tinha convicções, era o que bastava, sempre quis conduzir um caso desta maneira desde um processo que vivenciara no passado, e agora era a hora. Convicções! Essème chamou um grupo de colaboradores, especialmente escolhidos, expôs a situação e os objetivos e formou um grupo de trabalho. Alguns queriam que fossem chamados de “task-force“, ele até achou a ideia muito boa porque, além de chique, serviria para mostrar que não haveria fronteiras. Mas alguém ponderou que poderia ser considerado provincianismo e então ele, negativando o negativo, manteve o nome de “getê” mesmo.

Passaram dois dias em seminário e planificaram uma série de diligências, que foram detalhadas na sequência em diversas fases. A história do seu projeto-caso deveria ser contada como se narra um crime. Provas sempre são importantes, mas não eram fundamentais no caso. Indícios, de qualquer espécie, quanto mais melhor. Ao analisar o material obtido e produzir relatórios, ilações poderiam ser usadas indiscriminadamente, de preferência travestidas de raciocínio lógico. Mas se não desse também não tinha problema, melhor não perder tempo. Agilidade era a palavra-chave.

Antecipação de conclusões, no jargão “conhecimento sintético”, eram desejáveis pois, mesmo sem comprovação, a sua repetição ao longo dos procedimentos os fariam ser considerados como cabalmente provados. Ele mesmo, fazendo uso da sua especialização de perito na interpretação das palavras dos códigos de deveres e direitos, a tudo chancelaria e não haveria ser supremo que o contraditasse. Logo a seguir as prisões poderiam ser pedidas e ele trataria para que fossem decretadas, pois os indícios de risco de reiteração delitiva em outros projetos eram consideráveis. Assim, outros incautos, e a sociedade por extensão, estariam protegidos. Estavam todos no “getê” combinados no “metodus operandi”?

Na prática a operação se iniciou com a quebra do sigilo telefônico da arquiteta. Todas as suas ligações, exceto para sua mãe, foram usadas na suspeição de atividades criminosas. O amante da arquiteta foi descoberto pelas mensagens, era um figurão e teve que ter tratamento privilegiado, mas foi indicado como alvo para investigação (e ele que achava que só estava fazendo amor com uma senhora bem apessoada). O vendedor também teve seu telefone grampeado e suas ligações somadas às da arquiteta demonstraram uma enorme rede de fornecedores, clientes e prestadores de serviço. O “powerpoint” do “getê” ficou pequeno para tantas conexões.

A quebra do sigilo bancário da arquiteta traz novos elementos. Cada depósito receberá tratamento de prova bombástica. São decretadas as prisões da arquiteta e do vendedor e, na busca e apreensão, as notas fiscais recolhidas são usadas para aplicar os percentuais de comissões e assim é definido o cálculo do desvio. E estimados os valores, que são altos. O mestre de obra é submetido a condução coercitiva para mostrar seus contratos. Não há. As suas operações são verbais, há poucas notas na sua atividade. “É quase tudo de boca”, ele diz. Está comprovado o crime de caixa dois e ele também é preso.

A obra na casa de Essème para, obviamente, e a esposa se desespera. Tudo ocorreu muito rápido, como uma avalanche. Soube das prisões ao mesmo tempo que os pedreiros e serventes guardavam suas ferramentas para, atônitos, ir embora sem saber o que fazer. Ela dirige-se ao trabalho de Essème, onde irrompe em seu escritório entre uma audiência e outra. “Essème, eu não entendo. Nossa obra... Do que se trata tudo isso?” Essème começou a explicar que eles estavam sendo vitimas, ao que parece, de um grande esquema de desvio e lavagem de dinheiro... “Ao que parece? Mas eles estão presos! Você os prejulgou? Que defesa lhes será possível? Vocês vão ter que manter a todo custo suas razões, não é assim que vai funcionar?”, bufou impacientemente. “Você se coloca acima dos outros, isso é uma infantilidade emocional, Essème, você sabe disso. Você finalmente está a busca dos holofotes, como sempre quis.”

Essème, muito a contragosto, procurava fazer a esposa entender que ele e seu “getê” tinham convicções...”Pelas barbas do profeta!, Essème lá vem você e sua turma com essa conversa de ‘convicção’. Convicções são para Jesus Cristo e Sócrates, que as tinham e que não podem ser dissociados de sua determinação pessoal”, prosseguiu a esposa a elevar o nível de irritação. “Você, não! É a verdade que deveis buscar, é para isso que sentais nesta cadeira. E convicção é um perigoso inimigo da verdade, mais do que a própria mentira”. E foi avante. “Você se ‘acha’, Essème, mas não é Deus. E nem nunca será um filósofo tampouco. No máximo um sofista travestido de pseudo-hermeneuta. Francamente!”

Essème remexeu-se muito desconfortavelmente na sua cadeira de espaldar alto, pensando numa forma de encerrar a conversa e fazer com que sua esposa se retirasse. Tenta um argumento final e inicia a menção de que ele e o “getê” pretendiam passar a cidade a limpo, mas ela não havia ido até lá para perder a viagem: “Você olha para a sociedade como se ela fosse um baralho, em que te é fácil separar o preto do vermelho. Mas se te deparas com um curinga não sabes como enfrentá-lo à luz das normas. Você tem que destruí-lo, não é mesmo, Essème? E bancar o herói. E se você está querendo passar não-sei-o-quê a limpo, por favor peço preservar meus rascunhos. Caso contrário periga eu esquecer por quem eu me apaixonei um dia”.

Essème tenta manter sua conhecida cara de paisagem mas não consegue evitar o arregalo dos olhos. Não esperava esse passa-fora da esposa. Ela vai se dirigindo à porta, enquanto ele ainda se justifica ao dizer que ele sabia o que era certo, e que quem sabe o que é certo acaba fazendo a coisa certa. Embaixo dos alisares da porta do pomposo gabinete a esposa torna-se para ele uma última vez. “Essème, agora vejo que você não sabe que não sabe”. E saiu na intenção de fazer uma visita para a arquiteta e o mestre de obra na cadeia.

Essème quase acusou o golpe. Pediu à secretária que convocasse uma reunião com todo o “getê” para depois do expediente regular, e que não fosse interrompido por meia hora. Foi se recompondo aos poucos. Havia muito trabalho a fazer e era mister manter a sua conhecida obstinação (ou obsessão? – a dúvida passou rápido pela sua cabeça, a resposta que a esposa daria ele já sabia). Com o “getê” ele teve a atualização das diligências, o desdobrado planejamento das fases seguintes e, por fim, já tarde da noite, aprovou toda a operação.

As prisões até então tinham o motivo oficial de estancar a prática dos supostos crimes e a não obstrução das investigações, contudo tinham também a não confessada intenção do constrangimento dos custodiados para que eles cooperassem dedurando outros fatos e pessoas e facilitassem o trabalho dos investigadores. Foram-lhes oferecidos acordos de alcaguetagem, em que os presos poderiam reduzir muitíssimo as consequências para eles mesmos, caso também assumissem que eram criminosos e tudo era um grande esquema, c.q.d – como se queria demonstrar. Apesar da resistência inicial, a torturante pressão mental venceu. A barra forçada com competência permitiu que os membros do “getê” comemorassem a “espontaneidade” das colaborações.

A arquiteta delata outros arquitetos e outros pedreiros. Outras lojas e vendedores e gerentes também. O mestre de obra também dedura outros arquitetos, e também encanadores, eletricistas, gesseiros. O desdobramento de novas prisões e novas alcaguetagens não para. Outros ramos de negócio vão aparecendo, vidraçarias, piscina e jardim, tantos outros. Uma enorme rede de relações comerciais vai sendo desenhada. Organização criminosa e cartel são alardeados como descobertos. Denúncias são oferecidas, aceitas e inúmeros procedimentos são levados a curso. Um escândalo!

Lojas e estabelecimentos comerciais são levados a fazer também seus acordos e se comprometem a melhorar seus controles sobre gerentes e vendedores. E pagar pesadas multas, naturalmente, mesmo sobre as notas fiscais e faturamento contabilizado. Vendas com notas e pagamentos de impostos já são considerados crimes disfarçados de operações legais. Várias lojas menores fecharam as portas. As lojas maiores perderam muito seu porte.

A casa de Essème está o caos. Paredes quebradas, entulho e material amontoados convivendo com uma família aturdida. Essème não para em casa, ninguém imaginaria a magnitude de suas descobertas torturadas. Todos querem Essème e seus colaboradores para gerenciar seus condomínios.

Esse mercado, descobriu-se, era muito aquecido, promissor e intensivo em bens de capital e mão de obra. Dos mais importantes da economia local, apesar de ser usado para crimes, segundo o “getê”. Todas as obras de reforma residencial da cidade paralisaram aguardando soluções de pendências de toda ordem. O desemprego se expandiu violentamente. Serventes de pedreiro, estoquistas e um sem número de trabalhadores perderam seus empregos e voltaram para atividades marginais e o tráfico de drogas. Culpa dos empresários e de profissionais insensíveis, diziam Essème e seu “getê”.

Quem quisesse continuar e terminar suas obras teria que ir aos distritos vizinhos para contratar os fornecimentos e os serviços necessários. Alguém tentou levantar se esses interesses alienígenas não estariam por trás dos objetivos traçados naquele seminário de dois dias onde a operação iniciou sua gestação. Essème e o “getê” recebiam muitos prêmios e davam conferências nos distritos. Era estranho. Mas qualquer que fosse esse alguém seria logo calado e ameaçado por estar querendo obstruir as nobres tarefas. Infâmia!

Toda essa manobra intervencionista e arbitrária ficou conhecida na história como “Operação Régua T”. Todos acharam o nome horroroso, antiquado e obsoleto. Mas Essème gostou. É o que bastou.

Graco Jakal
Enviado por Graco Jakal em 21/02/2021
Código do texto: T7190072
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