É Madrugada Ainda

Toda dor é faminta,

vem, caça, come e

some...

Toda fome some.

Toda dor tem fome,

toda dor tem nome.

toda fome, some.

Fogueia e consome

feito lenha

de centeio...

A memória é um fenômeno estranho da mente humana, quase sempre falha em concretude. Se um pouco confrontada vacila certeza, antes absoluta. A memória mais remota que possui é tão longínqua que chega a ser abstrata, por essa razão confunde exatidão entre ser realmente lembrança de fato ocorrido, devaneio ou um sonho apenas, registrado equivocadamente no compartimento das lembranças. Da memória remonta um passado inexprimível, mas de tão intensa, as sensações nunca dispersaram da mente.

Era talvez um bebê ainda, calcula no máximo dois anos de idade – referência tirada da diferença que tem da segunda irmã mais velha. Ele o pai e a mãe, os três apenas, no que era talvez um fusca, que o pai guiava. Naquele exato instante manobra o carro como quem estaciona. Parados de frente a um estabelecimento de grande varanda com alvenaria mal acabada, no ponto de reboco. A varanda coberta estendia-se por toda a frente e a lateral direita, um balcão de madeira rústica bem usada limitava o interior a varanda que por sua vez era ocupada por algumas mesas e cadeiras de ferro pintadas algumas de vermelho, outras branca e ainda outras azuis, todas enferrujadas de pintura desgastada. Aquele estabelecimento à beira de uma estrada de chão batido esburacado e de sombria penumbra era um boteco, dos tantos existentes típicos e comuns entre os anos 80’ e 90’.

Assim que encostara o carro próximo uns dez metros do vão de acesso, no que não podia chamar de estacionamento vez que era apenas um pedaço de chão curto pavimentado de mato enlameado e iluminado por uma ínfima lâmpada de luz alaranjada, ali a criança inicia um choro sem causa aparente, era um choro involuntário - isso, se existe tal tipo de choro em uma criança -, sabemos pois, que choro de criança é se não único, o mais eficiente canal de comunicação da para externar medo, frustração ou alguma urgente necessidade.

É bíblica a afirmação o choro pode durar uma noite assim como é comum o ditado quem não chora não mama. A memória não confirma a causa daquele choro, relata, porém, a intensidade com que se dera, é esta intensidade que provoca quase que instantaneamente furor do pai, o pequeno não houvera emitido três ondas sonoras de lamúria quando com voz impetuosa e grave o pai ordena - cala a boca desse menino! Apenas o medo que se impõe por meio da força é capaz de cessar instantaneamente um choro infantil, mas qualquer mãe em ato de maternidade sabe que choro de filho pequeno é coisa subversiva, logo dono da própria vontade. Com isso dito há de se ter ciência que aquele interrompido bruscamente retornaria e dessa vez imbuído de veemência, coisa natural à subversão.

O retorno do choro agora mais intenso e agudo é respondido pelo pai, com a mesma afirmação anterior, diferente foi o tom ainda mais incisivo, emitido a mãe e direcionada a criança. Ali travava-se um confronto entre pai e filho. O primeiro defendia a razão original e legítima de natural autoridade paterna, enquanto a criança reivindicava uma necessidade, medo ou frustração. Em qualquer conflito as vias possíveis são a vitória de um lado o que implica na rendição do outro ou um acordo apaziguador e consensual. A força natural do pai não se renderia a um desfecho atípico cedendo. De posse de uma corrente na mãe esquerda, daquelas de ferro do tipo que se usa até hoje para trancar portão ou grade de casa simples – está aí trecho que a memória não confirma exatidão -, mas esse seria o desfecho. Enrola a corrente na mão deixando um ponta solta, aponta em direção a criança com semblante cerrado e profere a ameaça final: - ou você cala a tua boca, ou vou te dar uma surra com essa corrente.

Seria possível uma criança de até dois anos de idade ter a exata noção das implicâncias de tal ameaça? A lembrança não responde. O que relata na sequência é o triunfo do pai segurando um copo americano pela metade de cerveja que observa o pequeno filho aos soluços provocados pelo choro engolido, nos braços da mãe que o afaga, trazendo-lhe brandura e ternura que convergira em estado de sono até o ponto de sobrevir a inconsciência.

Adormecido, abre os olhos lentamente, tão vagarosamente que nenhuma percepção instantânea é possível, à medida que desperta vai reativando a consciência e cada um dos sentidos e a óbvia capacidade de percepção, uma vez que todos os seus cinco sentidos possuem todas as habilidades inatas. É com sua hábil visão que percebe a escuridão que o envolvia e progressivamente e simultaneamente, percebe - que além da escuridão, também lhe acompanhava a solidão. Se há entidades que podem provocar pavor histérico a uma criança, essas são a escuridão e a solidão. A de aceitarmos que não é nenhuma particularidade das crianças o domínio do medo frente a escuridão generalizada e a solidão constatada. É em ocasiões como essas onde a mente humana extrapola os limites da razoabilidade, tornando-se capaz de materializar o mais bizarro e atormentador instante.

Os olhos humanos são ferramentas poderosíssimas, permite enxergar desde a um pequeno grão próximo alguns centímetros assim como também nos permite ver pontos luminosos celestiais a distâncias imensuráveis. É incrível como os olhos humanos adaptam-se a menor refração luminosa existente, por mais ínfima que seja, os olhos captam a menor emissão de luz, permitindo assim a construção da identificação do ambiente onde está. Assim percebeu que quando despertou estava deitado no banco de trás do carro de seu pai, - o fusca.

Com o pavor dominado, pouca iluminação aos olhos e percebendo localização resolve levantar-se sob suas pequenas pernas, olhando pela janela de vidro fechado, estando a direita do carro, chama por sua mãe algumas vezes, não percebe que não apenas a janela a qual olhava buscando a mãe estava lacrada mas, sim todas as janelas ou qualquer fresta ou espaço que permitiria emissão sonora do chamado, retorna o choro acompanhado desta vez do clamor incessante pela mãe que estava assentada a alguns metros honrando função de matrimônio ao lado de seu inebriado marido. A lembrança atribuiu aquele tempo que ficara aos prantos clamando a mãe à medida de uma eternidade. Fracassado, sob condição de esgotamento não mais sustendo em pé as perninhas, senta e permanece aos prantos e clamor ininterruptos, mas agora em tom de sussurro, já que não mais lhe restara fôlego. Passa ali uma segunda eternidade, sentado, recolhido na quina entre a lateral da fuselagem que dava para a janela e o encosto do banco traseiro. Ao fim dessa segunda eternidade, já não mais chorava e não clamava, as cordas vocais esgotaram, apenas soluçava. Esmoreceu em fim seu pequeno corpo, silenciou sua mente e adormeceu sentado com as duas pernas recolhidas, joelhos juntos e dobrados, cabeça ali apoiada e suavemente inclinada a esquerda naquele canto atroz.

Um ditado havia sido desmentido, pois há quem chore e não mame. E uma afirmação bíblica confirmada já que aquele choro havia durado uma noite.

Quando então pensei

Na noite e em sua ida,

era madrugada ainda.

É madrugada ainda!

É madrugada sempre

Em minha lírica.

Poetas residem nas madrugadas

“nas madrugadas ainda!”

Não nas boemias,

Ou nos botecos das noites

Infindas...

Poetas residem nas madrugas

das cabeças encostadas,

solitárias,

Em seus travesseiros algoz.

C Brito
Enviado por C Brito em 27/02/2021
Código do texto: T7194678
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