Cantando na chuva

Seus dentes trituravam lentamente cada pipoca, que deixava os finos grãos de sal presos nos seus lábios tão vermelhos que pareciam os sapatos mágicos de Dorothy, no Mágico de Oz. Todo esse cuidado para que a épica trilha sonora ecoasse nos seus ouvidos, para admirar a belíssima fotografia de cores quentes de uma obra prima da sétima arte e para escutar os diálogos magnificamente executados, que a faziam chorar durante as três horas e cinquenta e três minutos.

O filme ? E o Vento Levou… , 1939, talvez seja a data o motivo pelo qual não havia mais que quinze pessoas na sala de cinema. Era o terceiro filme visto naquele dia, mas ela não se cansava de ficar sentada por horas e horas assistindo, pois era a sua maior paixão.

Na primeira vez que o viu, aos quatorze anos, nenhuma lágrima percorreu o seu rosto e dez anos depois, um mar de gotas saíam desesperadamente de seus olhos como se estivessem aprisionados na sua eterna angústia e encontrassem uma efêmera liberdade.

O celular vibrou, ela abriu a bolsa furiosamente e xingando a si própria por ter esquecido de desligar. Apenas uma notificação apareceu na tela: “Anne, onde você está ?”. Simples palavras que foram o suficiente para deixar uma intensa ira destroçá-la completamente.

Cobriu o rosto com as mãos e gritou sem que suas cordas vocais ressoassem algum ruído. Respirou fundo e continuou assistindo o filme, pois foi para esquecer de tudo que estava a deixando mais estressada que Anne fora ao cinema e uma mensagem de sua mãe não iria impedir isso.

A apresentação de sua dissertação do mestrado seria no dia seguinte, ela sabia que após 730 dias lendo, estudando e escolham criteriosamente cada palavra, o trabalho seria aprovado, mas poderia ser melhor, poderia ser perfeito, poderia ser único, algo que ela não conseguia ser. Alguém incomum e inigualável.

Não havia nervosismo, somente a sensação de inferioridade, pois tinha certeza de que qualquer outro estudante iria facilmente superá-la.

A tela escureceu.

As luzes acenderam.

Ela se levantou depois que a última pessoa passou pela porta de saída e foi andando vagarosamente. Não queria que o filme terminasse, não queria voltar para uma vida vazia, solitária e sem surpresas. Foi retirando as lágrimas com as mãos enquanto ouvia o som de seu salto pelo vazio corredor que a levaria de volta para a inclemente realidade.

Assustou-se ao ver o quanto inchados estavam seus olhos, então começou a colocar maquiagem para cobrir toda a sua desconhecida dor e as olheiras, decorrentes de madrugadas em claro. “Vamos colocar um sorriso nesse rosto”, ela pensou e depois de passar mais uma camada de batom ligou o celular e viu cinco ligações perdidas: quatro de sua mãe e uma de seu professor orientador. Antes que pudesse retornar a ligação, ele ligou novamente:

- Boa noite, Anne. Você está bem ?- Ele perguntou com sua serena e tranquilizante voz de sempre

- Sim- Respondeu seguramente para demonstrar um falsa confiança- Eu estava no cinema.

- Tudo bem. Não se preocupe com a apresentação. Está tudo perfeito, mesmo que você fique insistindo que não, eu sei que em algum lugar você apresenta um mínimo de autoconfiança.

- Obrigada pelo consolo.

- Você mesmo disse que se divertiu em certos momentos escrevendo a dissertação ?

- Bom, em todo que trabalho que precisa ser feito, existe algum elemento de diversão.

- Vá para casa e descanse. Não há lugar algum como o nosso lar. Boa noite.

Anne encostou-se na parede e começou a ler todas as mensagens recebidas, a primeira, da sua mãe: “Francamente minha querida, eu não dou a mínima para o seu trabalho sobre algum maldito filme.” E a segunda, do seu namorado: “Vai dar tudo certo amanhã, você é incrível, que a força esteja com você”.

Ao andar em direção ao seu apartamento começou a sentir as gotas de chuva, mas ao contrário das outras pessoas que corriam e resmungavam por que não estavam com um guarda-chuva, ela levantou levemente o canto da sua boca e continuou e seu percurso. Andando na mesma velocidade e cantando na chuva.

Clarice Gaarder
Enviado por Clarice Gaarder em 05/03/2021
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