Pequenos Prazeres no Monótono Confortante

Final de junho, uma manhã gélida e nublada, a névoa pairava sobre as partes mais baixas da rua e o orvalho cristalino era visível nos gramados; portanto, uma típica manhã dessa época do ano que já indica o prelúdio do árduo inverno que está por vir.

Os primeiros raios luminosos da aurora começam a surgir e o quarto ainda se encontra em um grande breu, que devido ao enorme frio e a pouca iluminação do cômodo, a preguiça de acordar mesmo com o despertador ressoando sem parar é imensa, pois tenho certeza que um pé para fora da cama e a ausência do calor dos cobertores significará um grande remorso, porém contrariando todas as vontades do corpo me ponho de pé e muito sonolento me dirijo ao banheiro, onde escovo os dentes vagarosamente e lavo o rosto com aquela água que parece várias fincadas de agulhas em minha pele de tão gelada que está. Deixo o café coando e cuido do meu querido companheiro angorá de pelagem laranja, leio as notícias do jornal, adoço e bebo uma xícara de café e ponho a despir-me do pijama e colocar a minha roupa rotineira.

Estou pronto, espero que esteja.

O longo trajeto até o escritório de arquitetura onde trabalho é a primeira dádiva diária que recebo, estou ali, estou só, me perdendo num turbilhão de pensamentos que formam a mente. Com o vento batendo em meu rosto e o barulho dos carros passando ao meu lado, sigo calmamente em silêncio por 1 hora, apenas pensando e percebendo a junção dos vários sons que constituem aquele ambiente, o canto dos pássaros, o latido dos cachorros, as vozes das mulheres que passam ao meu lado, o som dos motores, tudo isso forma uma sinfonia única que apresenta várias nuances.

Pois lá estou eu, adentrando o prédio e dando meus cumprimentos a todos que vejo em meu caminho, desde o carismático porteiro, as pessoas que mal conheço que encontro no elevador até chegar no escritório e encontrar os meus colegas; Guilherme logo chega contando do filme do Kubrick que assistira ontem, Ana me conta que passou a noite em claro cuidando de sua filha recém-nascida e Júlio me mostra a foto de sua nova geladeira que chegou depois de tanto tempo. Ali estamos para mais um dia. O frio logo desaparece para ser substituído pelo calor humano que contagia a sala de paredes claras com alguns quadros espalhados; em cada mesa ali ocupada há uma história, ambições e convicções, cada um tão único e ao mesmo tempo tão parecidos. Conversas vão e vem, vários e vários assuntos, úteis ou fúteis, estamos convivendo juntos naquele momento, é o que importa.

Mas lá está o meu pequeno prazer no monótono confortante, logo à minha frente. Não importa a hora ou como seja, lá está a doce garota dos cabelos ondulados castanhos claros, dos lábios tão doces quanto mel e dos olhos verdes que parecem ali conter toda a magnificência da vida e que tanto me hipnotizam. Vem em minha direção com aquele belo sorriso que é capaz de me alegrar mesmo nos momentos mais difíceis e com sua voz serena, começa a conversar comigo, onde permanecemos algum tempo contando histórias, causos e rindo das situações que havíamos passados juntos anteriormente. Eis aqui o momento que me rendo ao sentimento e ao que meu antigo eu classificaria como "comportamento idiota de um estúpido apaixonado"; pois é, algo tão simples, mas de todos meus outros prazeres diários, desde a hora que ponho a levantar-me da cama até me recolocar novamente nela, nenhum há de superar a gratificante presença dela em minha vida.

Dirijo-me à minha mesa que fica ao lado da janela e conforme o tempo passa observo na calçada o movimento das pessoas, a lenta dança das árvores e o céu cinza que parece não ter fim. Olhando por ela, parece a existência ser tão linda e chamativa, ali pareço abandonar tudo o que há de negativo no mundo, pois prefiro perder-me com a vista que observo, a harmonia secreta guardada na natureza e em nosso comportamento ao invés das infinitas mazelas.

Quando o sol se põe para dar lugar à Lua, recolho minhas coisas e faço o caminho inverso que fiz pela manhã para chegar novamente em casa, talvez com algumas outras paradas agora e de forma mais lenta, pois não estou só, estou na calorosa companhia de quem amo e quero aproveitar cada instante.

Assim terminará mais um dia, dormirei e acordarei novamente, escovarei os dentes e tomarei café na mesma xícara de antes e assim por diante, como um ciclo vicioso que tende a repetir as mesmas coisas incansavelmente, com ressalvo de algumas poucas mudanças.

Entendo que essas constantes podem ter diversas interpretações, principalmente se é algo ruim ou bom, mas bom... não é nenhuma delas, é algo natural, isso nos satisfaz e é o que importa, pois somos predestinados inconscientemente a termos essa vida, é assim que garantimos a sobrevivência e convivência de nossa espécie, nos ocupando dos pequenos prazeres que a vida nos dá diante da imensidão de tédio e decepções que ela é, aproveitando os momentos com aqueles que consideramos ter feições e amor. No final somos um antro de existencialismo até o resto de nossos dias, apenas esperando voltar ao vazio de nossa criação e onde nossa curta presença aqui será completamente esquecida, mas que ao menos pudemos ter aproveitado aquela pouca felicidade que outrora tivemos.

Quanto a mim, o breu e o frio continuam, porém meu café está melhor que ontem e meu gato veio se aconchegar no meu colo, minha primeira dádiva diária começou mais cedo dessa vez, parece promissor.