Ensaio sobre o confinamento I- Antes mal acompanhado do que só.

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Cena 1

ATO I

Luz. Fátima se ajeita no sofá. Retoca o batom, coloca um vaso no mesmo lugar, ajeita o cabelo.

Campainha.

FÁTIMA- Já vai!

Se ajeita mais uma vez. Abre a porta, Márcio está com um buquê de flores.

MÁRCIO- Fátima?

FÁTIMA- Márcio! Entra?

MÁRCIO- Com licença. Pra você!

FÁTIMA- São lindas, eu vou buscar um vaso bem bonitinho pra coloca-las, senta, fique à vontade!

MÁRCIO- Obrigado!

Observa o apartamento, senta-se, experimenta várias poses.

FÁTIMA- Pronto, ficarão lindinhas nesse daqui. – coloca as flores no vaso e senta-se ao lado de Márcio – Então, tudo bem?

MÁRCIO- Tudo ótimo, você é mais bonita pessoalmente!

FÁTIMA- Obrigada, você é do mesmo jeito!

MÁRCIO- Do mesmo jeito mais feio ou mais bonito?

FÁTIMA- Ah, do mesmo jeito, do mesmo jeitinho!

MÁRCIO- Ah!

FÁTIMA- Você deve achar que sou uma oferecidinha, né? Convidar um cara que conheci pelo aplicativo e conheço a duas semanas pra vir na minha casa.

MÁRCIO- Nada, eu achei bacana!

FÁTIMA- Fiquei tímida agora. Tinha preparado um jantarzinho mas acabou que perdi o ponto e não quero que você tem uma intoxicação alimentar. Vamos pedir algo?

MÁRCIO- Pode ser, você decide!

FÁTIMA- É, já vi que com você, sou eu que tenho que dar o primeiro passinho. Bem, vou procurar um filminho na TV, podemos ver juntinhos ou cada um no seu cantinho, o que acha?

MÁRCIO- Por que você sempre fala as coisas no diminutivo? Filminho, vasinho, passinho?

FÁTIMA- Acho fofinho!

MÁRCIO- Eu acho um pouco infantil...zinho!

FÁTIMA- Não tem probleminha, logo você acostuma!

MÁRCIO- É melhor eu ir, não acha?

FÁTIMA- Mas você mal chegou, não gostou de mim. O que há de errado, é meu jeito, minha voz, meus diminutivos?

MÁRCIO- Não, que é isso! É que talvez precisemos nos conhecer um pouco mais antes de marcar um encontro.

FÁTIMA- Ué, mas a gente tá se conhecendo. Eu percebi que você é um cara sem iniciativa, paradinho, quase lerdinho, mas mesmo assim estou aqui, disposta a te conhecer melhor.

MÁRCIO- Você achou?

FÁTIMA- Achei!

MÁRCIO - E isso não te agradou? Você acha que preciso mudar, isso é algo que me prejudica?

FÁTIMA- Calminha, dá pra aguentar. Vou pedir algo pra comer e você procura um filminho aí pra gente, pode ser?

Fátima sai e Márcio zapeia a TV. Para no Jornal

TV- Atenção, estamos vivendo uma pandemia. Um vírus vindo da China já chegou em vários lugares do mundo, inclusive no Brasil. Não saiam de casa. As autoridades pedem pra que ninguém esteja na rua e que evitem contatos. Ah, e usem álcool em gel!

MÁRCIO- Tudo assim, de uma hora pra outra?

TV- Teatro, querido, teatro!

Fátima chega desesperada.

FÁTIMA- O síndico me ligou, o prédio está fechadinho, não podemos sair de casa! Você imagina o que isso significa?

MÁRCIO- Que a comida não vai chegar?

FÁTIMA- Não! Que você terá que ficar aqui sem saber quando poderá ir embora.

MÁRCIO- Vixi, complicadinho!

Fecha luz.

ATO II

Luz. Márcio está de pijama, cortando a unha do pé!

FÁTIMA- Eu não acredito que você está usando meu alicate de fazer unhas pra cortar esses cascos!

MÁRCIO- Não sabia que não podia, desculpinha!

FÁTIMA- Você está usando os meus diminutivos?

MÁRCIO- Euzinho? Nunquinha!

FÁTIMA- Você vê como é a vida. Eu sou queria uma ficadinha e agora estamos praticamente vivendo junto com alguém que eu sequer sei o sobrenome.

MÁRCIO- Pereira da Silva. Mas você queria só uma ficadinha? No aplicativo você disse que queria um relacionamento sério?

FÁTIMA- Só disse isso pra bancar a romântica. Na verdade, eu sinto que preciso de alguém que cuide de mim, sabe? Pelo menos fazer uma comidinha decente.

MÁRCIO- Eu também sempre sonhei em ter alguém pra cuidar de mim, alguém pra rir das minhas piadas sem graça, pra me fazer companhia.

FÁTIMA- É, mas essa pessoa definitivamente não é você. Suas manias são terríveis.

MÁRCIO- Ah é, diga uma delas.

FÁTIMA- Mania de enfiar qualquer coisa pontiaguda no ouvido.

MÁRCIO- Completamente irrelevante. Já você, acha que não ouço seus peidinhos que você trata como discretos mas que não são?

FÁTIMA- Não?

MÁRCIO- Não!

FÁTIMA- Só não fedem mais que seu mau hálito.

MÁRCIO- Eu não tenho mau hálito.

FÁTIMA- Ah, tem sim. Talvez alguém nunca foi sincero o suficiente pra te contar que você tem!

MÁRCIO- Ah, talvez alguém sincero também ainda não tenha te contando sua voz é irritante, muitas vezes eu não sei se estou ouvindo você ou uma coruja!

UNISSONO- Tá difícil conviver com seus defeitos!

FÁTIMA- Olha, melhor você ir!

MÁRCIO- É, eu acho melhor ir mesmo!

FÁTIMA- Acho que vou pegar um saco ou algo que te proteja lá fora. Pelo menos pro vírus não te comer vivo, né?- sai-

MÁRCIO- Não tem problema. Se eu me for, quase ninguém irá sentir minha falta.

Ela volta com o saco de lixo

MÁRCIO- Posso ir ao banheiro pra tirar esse pijama? Aliás de quem era mesmo? – Márcio sai-

FÁTIMA- Pode sim. Era meu... eu comprei pensando que se um dia tivesse um marido, que ele iria usar. Sabe, eu sinto que talvez ninguém sentirá minha falta também. Uma coisa em comum entre nós, é que estamos aqui trancados há uma semana e até agora ninguém se preocupou com a gente.

MÁRCIO- entrando- É que por mais diferente que pareça, só tivemos um ao outro, mesmo mal nos conhecendo.

FÁTIMA- Eu fiz um buraco no saco de lixo pra você colocar a cabeça, ficou uma ótima capa. Por sorte eu tinha uma máscara aqui. Sempre uso quando vou pintar o cabelo, por causa do cheiro da tinta, sabe?

MÁRCIO- Sei! Bem, é melhor eu ir.

FÁTIMA- Espera, fica! Olha, eu sei que posso estar sendo intensa demais, mas eu não quero ficar sozinha nesse apartamento!

MÁRCIO- Eu também não quero ficar só. Mesmo que pra não ter que ficar só, eu precise ficar com você!

FÁTIMA- Você está dizendo que só quer ficar comigo pra não ter que ficar só?

MÁRCIO- Não foi isso que você disse também!

FÁTIMA- Eu não disse isso!

MÁRCIO- Não com essas palavras!

Os dois começam a discutir enquanto a luz vai baixando.

ATO III

Luz abre em Márcio, já velho, sentado no sofá.

FÁTIMA- Márcinho, a jantinha já está prontinha.

MÁRCIO- Eu não vou comer sua gororoba.

FÁTIMA- Para de reclamar porque se você não gostasse da minha comidinha, não estaria aqui.

MÁRCIO- Eu estou aqui esperando a pandemia passar.

FÁTIMA- Isso foi em 2020, já estamos em 2050.

MÁRCIO- Já? Nem vi o tempo passar. Também, só trancado aqui nesse apartamento.

FÁTIMA- Tá vendo, se você fosse embora todas as vezes que disse que iria, talvez nunca estaríamos juntinhos.

MÁRCIO- O que não mudou com o tempo, foram seus diminutivos, continuam irritantezinhos.

FÁTIMA- Aliás, estava pensando aqui comigo, quantos anos você tem mesmo?

MÁRCIO- Acho que 70 e você?

FÁTIMA- Devo estar por aí! O que importa é que enquanto tivermos um ao outro, não estaremos sozinhos.

MÁRCIO- Você está falando como se fôssemos casados, a gente só mora junto.

FÁTIMA- É, a gente nem se ama. Só estamos juntos pra não ficarmos sós.

MÁRCIO- Mas existe além de nós, outras pessoas que não se amam e mesmo assim moram juntas só por medo da solidão?

FÁTIMA- Eu acho impossível!

MÁRCIO- É impossível!

A luz vai fechando.

Elmo Férrer
Enviado por Elmo Férrer em 17/03/2021
Código do texto: T7209470
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