Ensaio sobre o confinamento II- Mais um João

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ATO I

Cena escura, João 1 é jogado no quarto.

JOÃO 1- Me tira daqui, eu já falei que eu não fiz nada, porra!

João se debate pelo espaço, chora!

JOÃO 2- Não adianta gritar, cara, eles não vão te tirar daqui!

João 1 olha pra ele com estranheza.

JOÃO 1- Poxa, cara. Eu não fiz nada, velho. Tava na rua, vindo do trampo. Eles simplesmente me pegaram, me jogaram dentro de um camburão e me jogaram aqui.

JOÃO 2- Quando se é negro, não precisa fazer algo pra ser culpado por alguma coisa.

JOÃO 1- Você está aqui há quanto tempo?

JOÃO 2- Me jogaram aqui ontem. Eu também não fiz nada além de existir!

JOÃO 1- Ouvi o cara falar que eu era o último. Será que acham que fazemos parte de alguma quadrilha e eu fui o último a ser pego?

JOÃO 2- Não sei, irmão. Sempre acham tantas coisas sobre a gente! Por que você não senta, não fica quieto? Tenho certeza que logo mais alguém deve aparecer por aqui pra nos dar alguma explicação.

JOÃO 1- Alguém já veio desde que você está aqui?

JOÃO 2- Não, só pra jogar isso que eles chamam de comida. Qual é o seu nome?

JOÃO 1- João!

JOÃO 2- Também sou João. Existem tantos Joões por aí, não é?

JOÃO 1- O que você acha que irão fazer com a gente?

JOÃO 2- Estou me perguntando isso desde que entrei aqui. Mas pensando pela nossa semelhança na raça e nome, suponho que eles têm algum problema com negros ou com Joões.

JOÃO 1- Creio que você também não seja rico.

JOÃO 2- Geralmente não somos. Geralmente somos dos lugares mais excluídos. Ninguém sabe ao certo como vivemos, então representamos uma coisa só e quase sempre, a coisa que nem todos gostam ou querem ver.

JOÃO 1- Como deve estar minha velha agora? Deve estar doida atrás de mim. Eu sempre tinha horário pra chegar e quando ia demorar, sempre avisava.

JOÃO 2- É, eu também! Elas sempre querem saber por onde estamos e pra onde vamos, né? Deve ser porque no fundo, elas sabem que podemos sumir a qualquer momento. Ser negro é viver sem saber onde estão os caminhos seguros.

JOÃO 1- Eu lembro uma vez, eu estava na rua brincando de bola com um amigo...

João 2 pega o travesseiro ou algum objeto cênico que pode representar uma bola.

JOÃO 2- Pega João! (joga a bola)

JOÃO 1- A bola foi parar longe. Eu fiquei com dúvidas se deveria ou não ir buscar, minha mãe sempre me dizia...

JOÃO 2 (mãe)- Filho, cuidado com as coisas que estão longe de você. Tudo que estiver fora do seu lugar, pense bem antes de pegar. Mesmo que seja seu, podem dizer que não é.

JOÃO 1- Será que a mãe de todos os Joões são parecidas?

João 2 começa a assobiar ou entoar uma melodia.

JOÃO 1- Bonita música, cara!

JOÃO 2- É, gosto muito dela. Meu sonho sempre foi ser cantor, mas tive que dar uma parada porque tive outras coisas pra fazer pelo caminho. E você qual é o seu sonho?

JOÃO 1- Putz, eu sonho com tanta coisa. Tanta coisa que nem sei como cabe tudo aqui na mente. Quando eu era criança eu queria ser professor, tô batalhando aí pra fazer uma faculdade. Queria poder ensinar os pequenos lá na quebrada, saca? Me vejo tanto em cada um deles.

JOÃO 2- Além do sonho de ser cantor, eu também queria ser um executivo, andar de terno e gravata. Acha demais?

JOÃO 1- Sonho é sonho, não importa qual.

JOÃO 2- Uma vez mandei currículo pra trabalhar num escritório. Tenho alguns cursos nessa área.

JOÃO 1- Que massa, cara!

JOÃO 2- Me ligaram lá em casa, falaram que meu currículo era um dos melhores e me chamaram pra uma entrevista.

JOÃO 1- E como foi?

João 2 executa a ação enquanto fala

JOÃO 2- Me arrumei com uma beca da hora. Foi difícil chegar, ônibus, já sabe né? Mas cheguei!

JOÃO 1- (entrevistador)- Pois não!

JOÃO 2- Eu vim pra entrevista de assistente.

JOÃO 1-Você é...

JOÃO 2- João de Souza.

JOÃO 1- Ah sim, o currículo estava sem foto. Você já tem cursos na área mas nenhuma experiência.

JOÃO 2- É, já fiz uns freela!

JOÃO 1- Sinto muito, é que precisamos de alguém que já tenha trabalhado na área a pelo menos dois anos.

JOÃO 2- Mas eu aprendo rápido!

JOÃO 1- Vamos ainda conversar com outros candidatos e te damos um retorno, pode ser?

Fecha luz em João 1

JOÃO 2- Foi quase, cara.

JOÃO 1- Quem vê papel não ver cor, não é?

Duas marmitas são deslizadas até eles.

JOÃO 2- Chegou o rango. Não se assuste se sair um dinossauro de dentro. Mas é melhor comer porque agora, só amanhã.

Os dois se ajeitam pra comer. A luz fecha.

ATO II

Luz sobre João 2, usando uma coroa e um cetro.

JOÃO 2- Um dia, irão querer tirar de você, tudo aquilo que você tem de mais precioso, o seu orgulho de ser! Farão com que duvide da sua própria existência e relevância pro mundo. -João 1 acorda e observa com olhos atentos- Tentarão te oprimir, te excluir, te inibir. Chicotearão suas costas como fizeram a seus ancestrais. Tentaram te fazer sentir ódio, repulsa por ser quem você é. Mas tenha em mente uma coisa, menino! Você veio ao mundo pra ser um rei e carrega em sua pele a joia mais rara que existe no mundo. Siga firme, não se curve nem abaixe a cabeça. O mundo pode não ser um lugar bom pra alguém como você. Mas não esqueça jamais, que você é o que o mundo precisa!

João 2 coloca a coroa na cabeça de João 1 e lhe entrega o cetro. Fecha luz em João 2. João 1 se admira, papeando a coroa. Fecha luz em João 1 e abre em João 2, que levanta-se em meio corpo, entusiasmado com o sonho que teve.

JOÃO 2- João, João, acorda!

Foco em João 1

JOÃO 2- Eu tive um sonho!

JOÃO 1- Eu também!

UNISSONO- O mundo pode não ser um lugar bom pra alguém como você. Mas não esqueça jamais, que você é o que o mundo precisa!

Os dois se abraçam.

JOÃO 1- Já deve ter mais de cinco dias que estamos aqui.

JOÃO 2- Até agora nenhuma resposta.

JOÃO 1- O que será que fizemos?

JOÃO 2- Nascemos!

JOÃO 1- Tenho a sensação de que não nos querem vivos. Parece que acham que nossos passos devem seguir sempre a mesma direção, às vezes me sinto cansado.

JOÃO 2- Eu sei, irmão. Somos irmãos de cor, de corpo e de alma. Estamos juntos! Nem eu te deixo perder a esperança, nem eu deixo você, pode ser?

JOÃO 1- Combinado!

JOÃO 2- Aí você sabe que eu gosto de cantar uns raps e tudo mais, te falei, né? Pois antes de dormir, me veio um inteirinho na minha cabeça, curte?

JOÃO 1- Manda aí!

João 2 canta um rap (composição alunos). A direção pode optar por uma poesia cantada.

JOÃO 2- Maneiro!

Ouve-se um barulho de uma janela de ferro se abrindo.

VOZ- João dos Santos!

JOÃO 1- Me chamaram!

VOZ- Bora logo, rapaz, estão te chamando na sala da direção.

JOÃO 2- Será que você será solto?

JOÃO 1- Não sei, cara!

JOÃO 2- Se você for, procure minha mãe, dona Conceição (falar um endereço decidido pela direção). Diz que tô aqui e espero sair logo.

JOÃO 1- Cara, a gente vai se ver de novo. Eu vou fazer tudo que eu puder pra te tirar daqui.

VOZ- Bora logo rapaz!

Se abraçam e João 1 sai.

Foco em João 2. Música de fundo, a luz vai baixando. Em B.O, ouve-se dois barulhos de tiro.

ATO III

Foco em João 2. Ele anda de um lado pro outro. Ouve-se o barulho da porta, uma marmita escorrega pelo chão.

JOÃO – Ei, quando eu vou sair daqui? Alguém conseguiu falar com minha mãe? Oi!!!!

Uma luz bem fina entra em cena e deve iluminar só o olho dele, como se entrasse por uma pequena brecha na parede.

Entra uma música leve, abre luz suave em JOÃO 2, usando a coroa e o cetro.

JOÃO 1- E aí, meu irmão!

JOÃO 2- João!

JOÃO 1- Dias difíceis aqui, né? Já se passaram sete dias desde que eu fui. Eu vim aqui pra te dizer pra não ter medo. Milhares como nós, passaram exatamente pelo que passamos. Foram desaparecendo da sociedade, invisibilizados, escondidos, sumiram no escuro das respostas nunca dadas. Mas eu te digo, meu irmão. Um dia teremos a honra no nosso peito e a dignidade no topo da nossa cabeça. O momento é de luta, irmão. (olha pro público) – É de luta, irmãos.

Fecha foco.

VOZ- João de Souza.

João começa a cantar o rap que João 1 cantou, enquanto a luz vai se fechando.

Elmo Férrer
Enviado por Elmo Férrer em 17/03/2021
Código do texto: T7209472
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