Marcas da Vida

Marcas da Vida
“Dizem que a saudade não vai embora. É porque o amor resolveu ficar”.
O pai, Zé da Barraca, perdera uma das mãos durante a infância, dilacerada em um moedor de cana. Desde então, só andava com o cotoco no bolso da calça.
Mais tarde, um dos filhos, o mais velho, adquiriu tal hábito, mesmo tendo as suas mãos.
Zé era um homem íntegro, trabalhador, honesto, de pouca conversa, nunca levantou a voz para seus filhos, mas impunha total respeito e admiração sobre eles. Era repleto de bons exemplos e valores.
Teve uma pequena “bitaca”, daí o apelido Zé da Barraca, mas foi dirigindo um caminhão Alfa Romeu (Fenemê), sem nenhuma adaptação, que trouxe o sustento e as historias de sua família.
Como Zé dirigia bem pelas estradas da vida!!
Naquela época, recebeu uma autorização especial para conduzir o seu caminhão.
Zé amava Zozoca, sua mulher, mãe de seus filhos. Ela tinha um temperamento bastante diferente de seu homem, tinha “pulso forte”, corrigia os filhos com rigidez e sabedoria, com sábias palavras orientava a todos que faziam parte do seu convívio. Amava cozinhar e sua grande alegria era ver a casa simples, cheia de amigos. Não saía da cozinha e a fartura era abundante.
A casa tinha um astral diferente, ecoava vozes, risos, músicas. O grito do truco, causos e muitas conversas “olho no olho”. O amor e os ensinamentos não faltavam. Os pratos especiais preparados por ela aguçavam o paladar, o olfato, a visão e o tato, pois era impossível passar pela cozinha e não “roubar” uma lasquinha das deliciosas iguarias que estavam sendo preparadas.
A avó materna, Margarida, tão sábia quanto a única filha, era extremamente organizada, caprichosa. Morava sozinha, sua casa humilde, com paninhos alvejados, roupas impecavelmente limpas, exalavam o cheiro de uma fragrância do perfume que ela usava diariamente. O chão coberto de vermelhão espelhava o brilho das pessoas que entravam naquela casa. Pisava-se com cuidado para não ofuscar o brilho do piso.
Ah! Casa de Vó...
No fundo um quintal com árvores e plantas, onde às vezes, os netos aproveitavam para namorar.
Margarida, era esperta e quando notava o silêncio no quintal, aproximava-se “tossindo” para que os “pombinhos” não fossem pegos de surpresa.
Era impossível sair da casa de avó sem comer um enorme pedaço de queijo e tomar um copo transbordando de café. Ninguém ousava recusar o “lanchinho” servido em uma mesa coberta por uma toalha limpíssima, seria uma grande desfeita, e certamente, ela não ficaria satisfeita.
Os cinco filhos do Zé, da Zozoca e netos da Vó Margarida foram criados em meio a toda esta simplicidade, nada faltou àquela família, principalmente virtudes e valores, até hoje seguidos por ele. Não foram uma família perfeita, eram diferentes em seus modos e atitudes, mas os preceitos, as lições ensinadas ao longo dos anos não sucumbiram ao tempo e em meio às tempestades da vida.
Durante a infância, deliciaram-se com os momentos mais felizes que uma criança pode viver. Brincavam na rua, pique-pega, bate estaca, finco, pipa e só paravam com o chamado da mãe, e “ai” de quem não voltasse para casa imediatamente.
Nos fins de semana, o pai colocava na boleia do caminhão toda família. A mãe preparava um delicioso piquenique. A família se dirigia para o Clube Caça e Pesca e lá passava o dia. Muitos vizinhos e moradores da redondeza, certos do passeio da família, ficavam em pontos estratégicos para pegarem uma carona na boleia do Alfa Romeo.
Em meio aos nascimentos, comemorações de aniversários, formaturas, casamentos, a chegada dos netos, a família foi crescendo, mudando seus rumos, mas sempre unida.
Em uma manhã, ao sair para ir ao supermercado para comprar ingredientes para seu delicioso almoço, Zozoca partiu ... um mal súbito. Quanta dor e desespero! A família perdeu o seu porto seguro... seu chão.
A alegria durante muito tempo desapareceu daquela casa, da família. Muitos amigos não ousaram a retornar àquele espaço sagrado da Zozoca.
Vó Margarida, ficou triste, depressiva, pois perdera a sua única filha e dois anos após a partida de sua “menina” foi encontrá-la junto a Deus.
Seu Zé agora estava fechado em seu mundo, com o passar do tempo o Alzheimer o consumiu. A sua amada “Zozoca” foi sendo apagada de sua memória, mas continuou cada vez mais presente na vida e na memória de seus filhos, netos, amigos.
Seu Zé também cumpriu a sua missão e partiu ao encontro de sua amada.
A família... sobreviveu!
Seu Zé, Dona Zozoca, Dona Margarida continuam a fazer parte da memória afetiva de cada membro daquela família.
Aos poucos, as festas, os almoços, as alegrias, as tristezas, as doenças, sucessos, adversidades, as enchentes constantes, continuaram acontecendo...vida que segue...
Em todos os momentos vividos pela família eles são citados: um conselho deixado pela Vó Margarida, um segredo da Zozoca para preparar uma comida, a perseverança do seu Zé e as peripécias com o seu caminhão... Sempre são lembrados!
Eles são a essência!
Hoje, a casa construída pelo Zé da Barraca para abrigar sua família, encontra-se em ruínas, parte dela foi levada pela última enchente ocorrida há pouco tempo na cidade, porém é impossível entrar neste templo sagrado sem sentir todas as vibrações que foram deixadas. A varanda, a sala de visitas, a cozinha, mais uma vez, todos os sentidos são aguçados, o cheiro do café fresquinho, as risadas altas, a casa cheia e os sentimentos transborda, em forma de lágrimas, de alegria, de amor!! Saudades!!!
E a herança deixada? O caráter, a educação, o respeito ao próximo, o amor o carinho e a esperança. Não foi necessário fazer inventário para a partilha destes bens, que continuam se multiplicando a cada dia.
E eu, que não vivi esta história, após ouvi-la por diversas vezes, ouso a contá-la. Sinto que já faço parte dela!!
Com a benção de Zé, Zozoca e Margarida!

Dedico à família Motta