INESPERADO

Apressa-se.

“Não há tempo para me barbear”.

Toma a bananada ao mesmo tempo em que calça os sapatos. Confere os documentos pessoais: identidade, cartão de inscrição. Pega três canetas e alguns chicletes.

“Ah, não posso esquecer a garrafinha d’água e o pacotinho de biscoitos.”

Seu pai segura as chaves do carro e adverte: - Vamos, meu filho! Está na hora.

O rapaz olha pela última vez o penteado no espelho e bruscamente se encaminha à entrada do apartamento.

No elevador, pai e filho se entreolham. Nada dizem. A muda sensação de cobrança pesa no ar.

“Eu tenho que conseguir. Mostrar que sou capaz para ele parar de me cobrar tanto.”

Parada no terceiro andar para ingresso da senhora de feições indígenas. O cãozinho aboletado nos braços da mulher observa com desconfiança o garoto arrastar o dedo sobre a tela do celular.

- Meu filho, esqueça esse celular pelo menos hoje!

- Calma, pai! Estou apenas revendo a matéria em um esquema que baixei pela internet!

O homem contorce a boca, respira fundo e o Yorkshire eriça as orelhas com o olhar direcionado para ele. Perceptiva, a mulher acaricia o animal para evitar algum latido.

No caminho entre o elevador e a garagem, o garoto tropeça num batente e o celular cai. Ele leva as mãos à cabeça em desespero e pega o aparelho no chão: - Ah, não! Quebrou o visor e não consigo ler! - parecia que o jovem havia machucado uma parte do corpo, tamanha a tristeza pelo ocorrido.

“Coisa boa! Assim ele solta esse troço e pensa na prova.”

- Pai, como avisarei o senhor para ir me buscar?

Manobrando o carro para sair da garagem, o homem devolve: - Estarei lá às 11h30min, independente de você terminar a prova ou não. Um ou outro esperará e pare de falar sobre celular, por favor!

Com o olhar fixo no cartão de inscrição - BLOCO F SALA 205 -, o candidato segue em busca da sala de prova. Em letras douradas, visualiza o bloco, sobe as escadas e adentra a sala sem conferir a relação de inscritos afixada ao lado direito da porta. Cinco minutos antes do início da prova, a fiscal, à qual vestia calças jeans e camisa branca, confere a identificação dos presentes.

- Seu nome não está na relação!

Ele se assusta e estende os braços para os lados: - Como não? Está aqui o meu cartão de inscrição.

A fiscal examina o documento e conclui: - Ah! Você está no bloco errado. Aqui é o bloco E. Vá logo para o bloco F! Ele sai correndo, esbarra no ombro de uma moça subindo a escada, sem se importar com o palavrão lhe direcionado. O fiscal da sala 205 do bloco F eleva as sobrancelhas ao notar a chegada brusca do rapaz suado e ansioso.

Inicia-se a contagem do tempo para realização do exame. “O enunciado dessas questões são longos”. Demora-se na 10ª questão. Algumas dúvidas lhe surgem. “Será que há duas respostas para essa questão?”. Passa à leitura da questão seguinte, chateia-se ao notar que se trata de um assunto que ele não estudou. Breve parada para beber água. Nos vinte minutos restantes para o encerramento da prova, ele se empenha em preencher o cartão de resposta, preocupando-se com o tempo. Sessenta marcações em quatro colunas de quinze minúsculos círculos referente às letras A, B, C, D ou E como resposta.

Ao preencher a questão 40, assusta-se: “a 39 é B, mas marquei C”. Frustra-se ao perceber o erro na marcação da série de questões 30 a 39. Suando frio, insere cautelosamente as demais respostas e assina a folha.

Entrega o cartão resposta ao fiscal e se retira pensativo: “Acho que vou levar bomba. E o pior é ter que ouvir o sermão do seu pai: “Você tem que se esforçar mais, esquecer vídeo game, internet e celular...”

Caminhando cabisbaixo, repentinamente eleva a vista ao passar em frente ao bloco E, percebe o motivo do equívoco decorrente de sua displicência e pressa: o traço da base da letra E estava apagado, produzindo a ilusão de se ler a letra F.

No outro dia, ao conferir o gabarito publicado pela organizadora do certame, Vitor se surpreende ao constatar que a série de questões que ele marcou acreditando ter se equivocado estava integralmente correta, resultando no acerto de cinquenta e seis questões do total de sessenta. E assim, contando mais com a sorte do que com as poucas horas de estudo, Vitor foi aprovado para um cargo público. Ao noticiar sua mãe, ele ouve seu pai dizer: - Parabéns! Agora, você está pronto para pegar seu rumo e sair da minha aba.

Aproxima-se de sua mãe que lhe sorri e balança a cabeça: “Não ligue para o que ele diz!”

IP: 27.03.2021.19.42

Ilton Paiva
Enviado por Ilton Paiva em 27/03/2021
Reeditado em 27/03/2021
Código do texto: T7217464
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