Lugar de doido é no hospício

Lugar de doido é no hospício

Alexandre Santos

A última semana tinha sido infernal.

Por mais que tentasse, o marechal Bazzorello não conseguia escapar da imprensa. Sem respeito por qualquer das cinco estrelas que lhe ornavam as dragonas, além de irritá-lo com perguntas sobre a pandemia (era assim que os comunistas se referiam à gripezinha vinda da China, pensava ele), os jornalistas insistiam em querer saber sobre uma tal Cloroquina.

Sinceramente, ele - que, especialmente nos últimos 12 anos, cuidara da banda marcial com afinco e esmero e, que, agora, quase sem querer, assumira o ministério da saúde - [ele] nada ou pouco sabia sobre os negócios da pasta, sobre a gripezinha que assolava o país e, muito menos, sobre a tal Cloroquina, que tanta curiosidade despertava em todo mundo. Além de os assuntos da pasta terem entrado no rol das suas preocupações há menos de uma semana (contra a sua vontade, diga-se de passagem), as fofocas do dia a dia não eram da sua alçada.

De qualquer forma, pela insistência da imprensa e, também, pelos fragmentos das conversas travadas à boca miúda pelos corredores, Bazzorello estava convencido de que a tal Cloroquina não era peça boa. Homem passional, sem precisar de qualquer outra informação, Bazzorello já formara opinião sobre Cloroquina: mulher de vida fácil, que, no seu entender, sem dúvidas, era mercadora do amor e merecedora da má-fama que parecia ter. Talvez, [ela] fosse uma das muitas namoradas secretas do presidente, um bando de sirigaitas que, em troca de mimos permitidos pelas rachadinhas e pela verba de gabinete dos deputados federais, faziam de tudo. Era isso, Bazzorello se convenceu. Cloroquina era garota de programa e, por isso, uns a recomendavam como 'tratamento precoce', especialmente para os males da solidão, e outros a diziam 'panaceia para qualquer estágio do tratamento'. Dada a todos, Cloroquina estaria traindo o sargento, colocando-lhe chifres embaraçosos. Era isto. Só podia ser isto. Ainda assim, famoso pela discrição como lidava com temas sensíveis, mesmo que viesse a saber de alguma coisa, [Bazzorello] jamais cometeria inconfidências. Não seria ele que colocaria mais fogo no falatório. Que os fofoqueiros perdessem tempo com as fofocas. Além do mais, o affair do sargento Evair com Cloroquina (ou com quem quer que fosse) era assunto privado dele e ninguém tinha qualquer coisa a ver com isso. Desde que ocorresse entre quatro paredes, o presidente deveria ser deixado em paz para cuidar da Cloroquina (e dos chifres que, eventualmente, lhes fossem colocados).

Bazzorello lembrava que, no início da semana, horas após passar para a reserva e, nos termos da regra em vigor, ganhar a quinta estrela e merecer o tratamento de Marechal, [ele] fora convocado ao gabinete do sargento Evair Buffa, no Palácio Presidencial. O marechal não se sentia confortável em prestar continências ou conceder reverências a um sargento Buffa, especialmente por saber que ele só não fora expulso das fileiras do Exército por negociar a reforma alegando problemas psiquiátricos. Mas, fazer o quê? Por um destes acidentes só possíveis na Democracia, na eleição presidencial do ano anterior, o praça doido teve mais votos do que o candidato professor e, pronto! Lá estava o sargento Buffa sentado na cadeira maior da república a fazer besteiras e dar ordens para todo mundo, inclusive para os oficiais generais das forças armadas.

- Boa tarde, meu presidente - contrafeito, mas disfarçando a indignação muito bem, o marechal bateu os calcanhares como era praxe no gabinete do Buffa.

- Bazzorello, demiti aquele doutorzinho do ministério da saúde e vou nomear você para o lugar dele - o sargento Evair foi direto ao ponto, provocando uma crise de tosse no marechal.

Não era segredo para ninguém que havia um sério atrito entre o sargento Buffa e os almofadinhas do ministério da saúde, inclusive sobre a forma como tratar a doença vinda da China, coqueluche do momento, que (embora, no dizer do presidente, fosse uma mera gripezinha) era tida como uma 'grave pandemia' pelos comunistas do ministério da saúde. Segundo os camaradas de Bazzorello, só porque tinham estudado medicina por seis anos e, depois, adquirido especialidades em cursos de pós-graduação, médicos metidos a besta contrariavam a opinião do presidente e, ao invés de acatar as drogas por ele receitadas, [eles] defendiam os protocolos sugeridos pela OMS. Quem era a OMS para querer mandar na república? Talvez os comunistas da OMS não soubessem, mas o país era soberano e tinha presidente. Se, ao invés de médicos, o ministério da saúde fosse comandado por militares, isso não aconteceria, pois, doutrinados na disciplina e na hierarquia, [os comandantes do ministério] saberiam da obediência devida ao comandante-em-chefe e não ousariam contestar as suas opiniões [as opiniões do presidente] sobre doenças e [sobre] o melhor tratamento aplicável a cada uma delas. A presença dos médicos estava inviabilizando a condução do ministério da saúde. Afinal de contas, como o presidente poderia comandar o ministério, se, para cada uma das suas ordens, surgiam dezenas de contestações médicas? O Buffa decidira. O ministério da saúde seria comandado por militares, os quais não teriam problemas em obedecer as ordens do presidente (na realidade, se não fosse o estardalhaço que os comunistas da imprensa provavelmente fariam, Evair Buffa acumularia a pasta da saúde com a presidência). Por outro lado, conforme o sargento Evair dissera ao seu primogênito, o Buffa 01, ninguém poderia acusá-lo de intransigência, pois, antes de entregar o ministério aos militares, ele tentara vários médicos e, sem exceção, todos foram insubordinados, causando-lhe problemas e decepções.

- ... - ainda tossindo, o marechal engasgou alguma resposta inaudível.

- Vou colocar ordem naquela bagunça. Ministro tem de saber quem manda - continuou o sargento Buffa, como se não houvesse alguém conversando com ele.

- Compreendo a situação, mas não entendo nada de saúde, presidente. Essa doença nova, por exemplo. O que vou falar quando a imprensa ou ministros estrangeiros me perguntarem alguma coisa? - finalmente, o marechal conseguiu balbuciar alguma coisa.

- Não se preocupe, Bazzorello. Você, por acaso, pensa que eu entendo alguma coisa desse negócio de ser presidente? Além do mais, para ser um bom ministro, basta você seguir as minhas ordens - Buffa disse exatamente aquilo quê esperava do futuro ministro.

- Mas, presidente, estamos no meio de uma pandemia - o marechal ainda ponderou.

- Isto é besteira, marechal. Bote uma coisa na cabeça: não estou pedindo. Estou mandando. Encare isto como uma missão.

- Se é assim, está certo, chefe - sucumbiu Bazzorello. Já decidido, o marechal esqueceu da alienação intencional a que se entregara nos últimos tempos para se concentrar na regência da banda do Exército e, lembrando comentários ouvidos na caserna, trouxe de algum lugar da memória a informação de que, dirigida por sucessivos médicos vermelhos, a pasta da saúde vinha dando muito trabalho ao presidente. Combater os comunistas era o mínimo que deveria fazer pelo país.

- E, lembre, Bazzorello: não dê trela às conversas sobre a gripezinha e proteja a Cloroquina dos abutres comunistas.

E, com a missão de pensar pouco e de ser os olhos, ouvidos, boca e, sobretudo, os braços do sargento Evair Buffa, lá foi o marechal Bazzorello - um experimentado general da banda, talhado, como os seus camaradas, na disciplina e na hierarquia das forças armadas - para o ministério da saúde. Como combinado (e determinado), ele não tomaria qualquer iniciativa importante e se limitaria a cumprir o expediente normal e a seguir expressamente as ordens do sargento-presidente.

Com a chegada do marechal no ministério, muita coisa mudou, a começar pela cerimônia de posse - uma solenidade sem o glamour das festas civis, ocorrida em encontro austero no gabinete do presidente, sem convidados e salamaleques, bem ao estilo militar. O ministério mudaria da água para o vinho.

Seguindo à risca as ordens do Buffa, lembrado do princípio da comunicação social segundo o qual 'aquilo que não chega ao conhecimento do público não aconteceu', na impossibilidade de pura e simplesmente (como queria) decretar a censura sobre as coisas de interesse do ministério, o marechal tratou de enquadrar a imprensa em regime de pão e água. Para início de conversa, tão logo descobriu que, ao invés daquilo que pensava, Cloroquina era o santo remédio que livraria o país das pragas comunistas, com a admiração e devoção pelo Buffa aumentadas, Bazzorello cancelou as entrevistas diárias sobre o surto da gripe (que o movimento comunista internacional insistia em referir-se pelo pomposo nome de 'pandemia de coronavírus') e suspendeu a divulgação do número de mortos e de infectados. "A imprensa que se vire para descobrir as informações que usam para alarmar a população e falar mal do governo", o sargento comemorou a ginástica que os órgãos da mídia passaram a fazer para obter dados que, antes, eram fornecidos graciosamente pelo ministério. Noutra vertente, sempre cumprindo ordens superiores e convencido de que, como dizia o presidente, o país enfrentava mesmo uma onda de gripe como tantas outras ocorridas no passado, Bazzoello cuidou de emperrar tudo que dissesse respeito à pandemia, chegando a priorizar campanha publicitária para a prevenção de outras doenças e minimizar os alarmes feitos pelas autoridades sanitárias. Observando o empenho como Bazzorello alardeava as maravilhas do tratamento precoce com Cloroquina junto a médicos de todo o país, o presidente Buffa constatou que, finalmente, podia confiar num ministro da saúde e, sem receio de que alguma opinião contrária pudesse atrapalhar a sua estratégia, podia entregar-se às próprias crenças.

Percebendo a apatia e, mesmo, o impulso dado pelo governo Buffa à pandemia - cuja letalidade crescia progressivamente, deixando um denso rastro de morte, dor e sofrimento -, a sociedade brasileira tratou de reagir. Ao tempo que o Parlamento Nacional removia os obstáculos legais alegados por Buffa para nada fazer e, por precaução, a Suprema Corte autorizava governadores e prefeitos a fazerem aquilo que o governo federal deveria estar fazendo, a imprensa cumpria a parte dela e, além de informar sobre o avanço da doença, denunciava o comportamento esdrúxulo (e quase criminoso) do sargento-presidente.

Nem assim, o governo se mexeu.

Pelo contrário. Incriminando o marechal Bazzorello como seu principal cúmplice, por pensamentos, palavras e gestos, o presidente Buffa se portou como quinta-coluna a serviço da doença. Achando-se, talvez, imune ao vírus ou considerando-o pouco perigoso, Buffa deu o mau exemplo, estimulando aglomerações, desmoralizando o distanciamento e as máscaras de proteção, negando importância à ciência e fazendo propaganda enganosa de remédios inócuos. O presidente, como diziam os infectologistas, 'era um salseiro de insanidades'.

Embora fizesse a festa dos obtusos, o modo Buffa de ser e de governar logo despertou asco nos meios esclarecidos, num processo que, como filetes d'água nas tempestades, se espalhou de cima para baixo, atingindo gente por todo canto, inclusive no governo. Inicialmente de forma tímida, com um gesto aqui, outro ali, pouco a pouco, o caudal engrossou e, em menos de um mês, impulsionada pelo crescimento vertiginoso do número de mortes decorrentes da pandemia descontrolada, enquanto, nas ruas, em meio ao som de panelas, o povo gritava 'Fora Buffa', surgiu uma enxurrada de ações, políticas e jurídicas, para cobrar responsabilidades ao governo relapso.

O presidente Buffa e o ministro Bazzorello foram, então, acossados ao extremo. Todos da banda pensante da sociedade queriam as suas cabeças. Naturalmente, enquanto estivessem nos cargos que ocupavam, [Buffa e Bazzorello] estariam protegidos pelas imunidades conferidas ao presidente e aos ministros. Esta blindagem, no entanto, era momentânea. Ambos sabiam que, um dia, quando voltassem à planície (fosse pelo fim do mandato ou por Impeachment no caso de Evair Buffa ou pela vontade do presidente no caso de Bazzorello), cairiam ao inferno pela caneta de algum juiz de primeira instância. Buffa parecia não ligar para a situação, mas, mesmo orgulhoso por cumprir uma missão importante, o marechal Bazzorello passou a ter dificuldades para dormir. A situação era delicada, mas fazer o quê? Missão era missão e ele [Bazzorello] estava cumprindo uma [missão]. Fosse como fosse, independentemente da situação, àquela altura, permanecer no governo passara a ser uma necessidade, uma questão de sobrevivência para o marechal.

Tempos depois, no entanto, após descobrir que, cumprindo ordem expressa do comandante-em-chefe das forças armadas, sem conhecimento do ministério da saúde e, claramente, extrapolando sua função constitucional, o Exército construíra um laboratório secreto para a produção de Cloroquina em larga escala, Bazzorello se convenceu que a psicopatia responsável pela reforma precoce do sargento Buffa ainda o afetava [afetava o sargento Buffa] duramente. Concluíra que o homem que presidia o país, ao qual servia com lealdade, era doido. Compreendeu, então, a insensatez de certos comportamentos do presidente - a agressividade com a imprensa e com todos que ousavam contestá-lo, a conivência com a ação de grupos criminosos ligados a seus filhos, o desrespeito às representações diplomáticas, o profundo descompromisso com a verdade, o descaso com a carnificina provocada pela nova doença, a apatia diante da pobreza e da fome que cresciam no país. Ele (e o país) estavam nas mãos de um perturbado mental.

De repente, desfeita a sensação de segurança, tardiamente, Bazzorello se arrependeu de ter assumido cargo no governo Buffa e temeu pelo seu próprio futuro. Estava numa situação delicada, pois, embora quisesse, não poderia deixar o cargo, pelo menos até resguardar-se dos perigos que o aguardavam na planície. Do jeito como a situação estava, no momento em que saísse do ministério, passaria a responder diversos processos e poderia ser condenado e preso. De qualquer forma, já convencido de que seus antecessores [no ministério] tinham sido demitidos, não por desobediência, mas por resistirem patrioticamente às loucuras do Buffa, Bazzorello desconfiou que sua hora estava chegando e, de alguma forma, se sentiu traído. Mais cedo ou mais tarde, ele seria sacrificado pelo Buffa, que, no mínimo, para escapar das acusações e ganhar alguma sobrevida, recorreria aos ensinamentos de Maquiavel, para quem 'às vezes, é preciso sacrificar anéis para salvar os dedos' e, sem pena ou arrependimentos, o entregaria às feras. Bazzorello precisava descobrir uma forma de se proteger do Buffa.

Precisava e o faria.

Olhou em volta. Além daqueles que o vinculavam a Cloroquina e outras maluquices do Buffa, só viu a galeria que retratava os quarenta anos passados na caserna. Era alí, junto aos velhos amigos e camaradas que buscaria a proteção necessária naquela hora. E, pelos próximos dias, usando tudo aquilo que sabia do sargento Evair Buffa, o marechal Bazzorello percorreu gabinetes espalhados por diversos Estados e conversou com quem tinha de conversar.

Semanas mais tarde, pressionado por todos os lados, o Buffa resolveu dar a volta por cima e aconteceu aquilo que Bazzorello sabia que, um dia, iria acontecer.

Passava das dez, quando as redações das principais redes receberam convite da assessoria de imprensa da presidência da república. Segundo o convite, ao meio-dia, o sargento Evair Buffa faria um importante pronunciamento à Nação. Em instantes, o burburinho estava feito. 'Qual besteira viria daquela vez?' se perguntavam jornalistas por todo o país. O pronunciamento anunciado por Buffa passou a ser o assunto do momento, despertando panelaços e confabulações por toda a parte, inclusive nos redutos mobilizados por Bazzorello.

Pontualmente às 12h30, cercado por todos os ministros (menos o [ministro] da saúde), o sargento-presidente Evair Buffa ocupou o púlpito armado às pressas para o tal pronunciamento.

Seguindo fielmente a orientação da empresa publicitária estrangeira que o acompanhava desde a campanha eleitoral, o sargento se superou e surpreendeu a platéia. Em discurso lido, preparado à luz de pesquisas de opinião pública, usando e abusando da palavra fácil, sem qualquer compromisso com a verdade, Buffa caprichou e disse, exatamente, aquilo que as pessoas gostariam de ouvir. Arrancando entreolhares dos presentes - a cada frase do presidente, incrédulas, as pessoas se perguntavam 'O que aconteceu?', 'O homem ficou doido?', coisas assim -, depois de dizer-se adepto da ciência, de repudiar qualquer pajelança com drogas não recomendadas pela OMS e afirmar que seu governo realizaria o mais vasto programa de vacinações já ocorrido no país, Evair Buffa anunciou a demissão do marechal Bazzorello, responsabilizando-o pelo obscurantismo que vinha atrapalhando o governo federal no enfrentamento à 'perigosa pandemia de coronavírus que assolava o mundo (aquela fora a primeira vez que Buffa chamava a gripezinha de pandemia).

Aquele discurso chocou as pessoas.

Não era para menos. Afinal de contas, nenhuma das palavras então pronunciadas pelo sargento correspondia àquelas por ele ditas e repetidas desde sempre. Não havia dúvida. Aquele era um caso típico de esquizofrenia. Aliás, o novo discurso podia surpreender as pessoas, mas a atitude inconstante do presidente não surpreendeu a quem acompanhava a sua carreira, pois todos já o consideravam 'doido'. Embora a psicopatia que levara Buffa à reforma precoce no Exército fosse conhecida por pouca gente, muitos atribuíam o jeito Buffa de ser e de governar a algum tipo de loucura. Agora, com o novo discurso - ao tempo que, por contraste, inocentava o marechal Bazzorello dos seus desmandos - o sargento Buffa assinara seu próprio atestado de loucura.

Na realidade, aquele discurso maluco antecipou um desfecho esperado e ansiado por muitos.

De fato, as pessoas ainda digeriam as palavras inesperadas do Buffa quando o salão foi invadido pelo marechal Bazzorello - que, diga-se de passagem, se não estivesse tão desiludido com o sargento ou, pelo menos, tivesse participado do planejamento do discurso-farsa, teria aceito o sacrifício e se deixaria imolar sem problemas, pois, afinal de contas, nos termos da sua formação militar, uma das funções mais nobres do comandado é servir de escudo para o comandante. Qualquer observador prontamente perceberia a gravidade da situação, não pelo batalhão de enfermeiros que acompanhava o ex-ministro, mas, também (e principalmente) pelo fato de ele estar vestido com a farda de marechal, em claro indicador de que [ele] agia com o respaldo da sua velha turma.

Em meio ao silêncio arrancado pela entrada abrupta do cortejo, sem ligar para os olhares estarrecidos dos seus antigos colegas de ministério, o marechal Bazzorello ergueu a voz:

- Bula de Interdição - em voz alta, o marechal Bazzorello começou a leitura do documento que declarava a interdição do sargento Evair Buffa 'por incapacidade mental', considerando-o inapto para o exercício de qualquer função de comando. Ao final, o atestado afirmava que Buffa deveria ser imediatamente afastado da presidência da república e encaminhado, de imediato, para tratamento em hospital psiquiátrico.

Já na leitura das primeiras frases da Bula de Interdição, enquanto no salão magno do palácio do governo, durante solenidade transmitida ao vivo para todo o país, sob alegre algazarra e calorosa salva de palmas, em operação auxiliada por muitos dos presentes, os enfermeiros capturavam e envelopavam Evair Buffa numa camisa de força para encaminhá-lo ao hospital, de ponta a ponta do país, de leste a oeste, de norte a sul, fogos espocaram, vuvuzelas buzinaram, vitrolas tocaram e, ainda sem saber qual destino lhes aguardavam, as pessoas foram às ruas em festa. E, como não se via há muito tempo, a alegria explodiu no pais. Velhos riram sem medo de terem aposentadorias confiscadas, noivos planejaram recepções de casamento, casais buscaram a casa própria, crianças sonharam com brinquedos novos, desempregados se prepararam para voltar a trabalhar, adolescentes escolheram profissões, comerciantes pensaram em ampliar as lojas e industriais planejaram novos produtos. De uma hora para outra, como se os sonhos não fossem mais proibidos, as pessoas extravasaram vontades e comemoraram a libertação do pesadelo.

Naquela tarde, contrariando regras básicas do jornalismo profissional, ao finalizar o noticiário, as edições extras de todas as emissoras falaram na possibilidade de um novo tempo no país e, abertamente, bradaram que "Lugar de doido é no hospício e não no palácio do governo".

(*) Alexandre Santos é ex-presidente da União Brasileira de Escritores, presidente da Associação Brasileira de Engenheiros Escritores e coordenador nacional da Câmara Brasileira de Desenvolvimento Cultural