Com a barriga na miséria

“Jogar um osso a um cachorro não é caridade. Caridade é compartilhar o osso com o cão quando você está com tanta fome quanto ele”.

Jack London

Quando paramos de frente ao balcão e pedimos três doses e bebemos vagarosamente aquela cachaça, os dois rapazes pararam de falar e ficaram olhando para nós. Disfarçamos e saímos do bar trepidando. Ainda ouvimos comentarem que nunca tinham visto mendigos com cacos de dentes tão brancos. Eles não sabiam, é claro, que nós comíamos muitas vezes o carvão de nossas próprias fogueiras.

Havia um de nós que falava demais enquanto caminhava. Dizia que já tinha sido gente e aquilo doía em nós que ainda nos considerávamos gente. Só deixamos ele conosco porque o sujeito tinha lábia e era mestre na arte de pedir. Às vezes, chegava com as mãos cheias de moedas e a sacola estufada de pão dormido e frutas enferrujadas. Por isso suportávamos a conversa fiada dele.

Ele tinha pensamentos grandiosos enquanto caminhava. Nós tínhamos apenas cansaço. Quando algo parecido com um pensamento dançava diante de nossos olhos era logo sobrepujado pelo ronco escandaloso de nossos estômagos. Aí paramos à sombra, limpando o suor ardido do rosto e cogitamos: o que havíamos quase pensado? A nuvem vestia o sol no alto do céu e já era hora de caminhar de novo.

Nesse negócio de pensamento estamos tão fracos que de vez em quando um folgado dos nossos perguntava o que outros já indagavam há anos e nunca soubemos a resposta. Perguntava assim se quem nasceu primeiro foi o ovo ou a galinha e ainda tentávamos responder durante algum tempo, mas a fome vinha nos salvar desse tipo de pensamento e comíamos o ovo que estava ali sonhando com a galinha que não estava.

Um dia ao acordar não encontramos um dos nossos. Depois de andar pelas quebradas o avistamos beijando a terra e com a boca cheia de formigas. Cutucamos o corpo dele seco como um pau, procuramos nos bolsos o que ele nunca teve. As formigas entravam e saíam da boca aberta por uma teia de baba ressequida. Em seguida saímos tremendo sob o céu da manhã e fomos para os bosques públicos.

Com a chegada do inverno o frio doía mais que a fome. Nesses dias tínhamos inveja dos pássaros com suas penas enflorestadas no corpo e seus olhos indiferentes. Eles nos faziam lembrar as pessoas com seus blusões e jaquetas de couro que passavam voando por nós dentro de seus carros velozes. Como se não bastasse, as aves ainda defecavam em nossos olhos e acordávamos achando que tínhamos ficado cegos durante a noite.

Numa manhã de vento frio e curioso estávamos tentando acender uma fogueirinha com folhas de alguns livros quando um cidadão diminuiu a velocidade do carro e gritou para nós a palavra blasfêmia. Isso não entendemos direito e levantamos bem na hora que ele subia o vidro e saía acelerado. Continuou gritando, então entendemos.

O sol estava fraco e a fogueira se apagava, por isso pegamos aquele livro de capa dura e preta, que estava de lado, e o repartimos no fogo. Nos sentamos tristes, balançando nossas cabeças. Mas gostávamos mais da quentura do fogo do que daquela capa dura e fria, isso sim. Acabamos aceitando que aquele livro nos deu alguns minutos de calor.

Alguns de nós conseguimos arranjar um bueiro no fim da rua para passar a noite. Outros foram morar naquela parte do cemitério aonde ninguém vai, dormem entre as cruzes secas. Nós que não temos essa coragem dormimos sob as árvores, às vezes acordamos com jatos d’água suja e perante olhares fantasmas. Não ligamos muito porque quem nos acorda também não consegue dormir.

make
Enviado por make em 02/04/2021
Reeditado em 02/04/2021
Código do texto: T7222500
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