A blusa

Eu poderia ser como outra qualquer. Por um momento até pensei que fosse. Fui produzida com mais outras 99. Eu era edição única, com tiragem pequena e só pessoas com um alto poder aquisitivo poderia me ter.

Eu estava exposta na vitrine daquela loja, num bairro chique e num manequim branco e sem semblante. Naquela moradia temporária, eu vi uma moça com fones nos ouvidos. Distraída, parecia sozinha mesmo com tantas outras pessoas passando por ela. Eu não entendo como os humanos podem se encontrar o tempo todo sem ao menos se conhecerem. E como, mesmo se encontrando, podem se sentir sós. Eu vi um rapaz jogando um resto de lanche na lixeira e vi um homem revirando a lixeira e, ao encontrar o lanche, dar um largo sorriso. Percebi que o que basta pra um, pode ser o que falta pra outro.

Vi também um garoto que passava do outro lado da rua e que me viu. Ele não tirou os olhos de mim. Me encarou tão profundamente que se eu fosse um ser humano, teria ficado corada. Mas eu só tinha uma cor, amarela. Eu sou uma blusa de moletom amarela com um arco-íris estampado no peito. Não importa quanto tempo de utilidade eu teria ou quantas pessoas me vissem, eu sempre seria um moletom amarelo com um arco-íris no peito. Mas praquele menino, eu senti que eu não era apenas uma blusa de moletom. Eu senti que pra ele eu era algo que ele desejava muito e que, de alguma forma, única no mundo pra ele.

Ele se aproximou e seus olhos brilharam. Brilho que apagou quando ele viu meu valor. Não entendo como os humanos colocam valor em coisas se o que vale é o valor que se dá para as coisas.

Vi que ele ficou decepcionado. Eu senti que ele me queria, mas que não podia me ter. Então ele se foi e eu fiquei triste. Eu queria ter ele pra mim.

As luzes se apagaram, a rua escureceu, a vitrine escureceu e eu nada pude fazer a não ser, dormir.

No outro dia, eu já estava sendo embalada, colocada numa sacola escura. Não sei pra onde fui, nem com quem fui, mas fui. Mãos me tocaram e então eu vi novamente a claridade. Eu já estava num quarto, sendo vestida por uma menina que tirou uma ou duas fotos comigo e depois me jogou em cima de uma cama. Eu a ouvi dizer que eu tinha ficado muito pequena e que não poderia me trocar porque eu era a última da coleção. Então ela me colocou num cabide, me colocou num armário escuro junto com tantas outras peças e por ali fiquei não sei por quanto tempo.

Um dia, não sei qual, fui tirada de lá e jogada numa pilha com outras peças. Eu lembro de ter visto a menina dizer que iria me colocar pra venda num bazar. Fui dobrada, colocada em cima de uma calça jeans e embaixo de um vestido florido. Depois fomos todas colocadas numa sacola e mais uma vez, não sei pra onde fui, apenas que tempo depois, fui retirada de lá, colocada novamente num cabide e exposta numa loja com milhares de outras peças. Pensei na minha trajetória. Eu era uma de cem, depois passei a ser última de cem, depois uma de várias. De tão desejada, passei a ser descartada.

Várias pessoas me tocaram, me provaram, me tiraram e me devolveram. Da vitrine de luxo para um amontoado de roupas que tiveram uma história. Roupas que dia foram importantes para alguém, mas que deixaram de servir.

Eu já estava conformada, talvez eu vivesse a vida inteira ali ou quem sabe, alguém me olharia com o mesmo brilho nos olhos daquele menino.

Vi as luzes se apagarem e se acenderem por muito tempo, até que um dia a luz acendeu e de repente, vi muitas pessoas alvoroçadas entrarem naquela loja. Ouvi alguém dizer “está tudo pela metade do preço”. Eu era uma em cem, depois a última de cem, depois uma de várias e agora, uma de várias pela metade do preço. Eu poderia até reclamar se eu não soubesse que nada é por acaso. Eu precisei chegar a esse estágio para que aquele menino, o do brilho nos olhos, pudesse enfim me levar pra casa. Eu o ouvi dizer “eu sempre quis essa blusa”. Ele sempre me quis e eu sempre o quis e pasmem, fiquei perfeita nele, fui feita pra ele!

Nele eu me sentia acolhida. Como ele me usava!

Com ele, vivi muitos momentos, fui a muitos lugares, comi até molho de pizza, o que não gostei. Eu pude conhecer a história dele e, de “o menino do brilho nos olhos”, pude reconhece-lo como André.

Ele tinha 17 anos e amava dançar e se expressar. Gostava de pintar as unhas, se maquiar e se vestir de uma forma que, não sei porque, as outras pessoas olhavam com desdém. Quando ele me colocava, se sentia lindo. Eu sempre o ouvi dizer que eu era a blusa predileta dele.

Uma noite fomos pra uma festa e fiquei molhada de tanto suor. Ele dançou, bebeu, se divertiu e até beijou um garoto. Eu fiquei ali, sendo roçada entre os dois, mas me senti aconchegada. Naquela noite, andamos sozinhos pela rua, de volta pra casa.

Eu não sei muito bem o que aconteceu. Ouvi alguém gritar “pega o viado” e, enquanto eu me perguntava o que era “viado”, senti que André corria muito rápido e ouvi um barulho. Senti o impacto do corpo dele entre mim e a calçada. Senti cada chute, me vi sendo arrastada pelo chão. Não ouvia os batimentos dele. Já ouvi seus batimentos tantas vezes. Quando ele me vestiu pela primeira vez, quando ele chorava, quando beijou aquele menino, quando correu...

Não sei o que aconteceu, fui rasgada ao meio por um homem que tentava fazer com que os batimentos dele voltassem. Depois disso, fui tirada, jogada num canto e mesmo sentindo a dor de ter sido rasgada, pude ver algumas pessoas a sua volta.

Não sei onde está André.

Elmo Férrer
Enviado por Elmo Férrer em 16/05/2021
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