CASAMENTO E PANDEMIA

-Não Maristela, ele não ligou nem mandou mensagem. Sim, sim, assim que ele der qualquer sinal de vida eu entro em contato com você, pode ficar despreocupada. (Desligou o celular) Meu Deus, mas que mulher pegajosa que o Ricardo foi arrumar! Toda semana é essa encrenca, é esse drama!

Ela ouve o som do carro do marido entrando na garagem e sai correndo escada abaixo, abre a porta e o vê tirando dois engradados de cerveja do porta-malas

-Maravilhoso! Ótimo! Que hora perfeita meu excelentíssimo marido resolveu voltar a beber! Então eu vou segurar o rojão do irresponsável do seu filho e da maluca da sua nora sozinha, pelo que eu estou entendendo?!

-Calma! Calma. Vamos acalmar os ânimos? Você está me vendo beber? Não, não está! Essa cerveja é para o nosso filho.

-Mas como você sabe que ele vai vir aqui?

-Para onde mais ele poderia ir?

Quase como que confirmando as palavras dele escutam o ronco da motocicleta no portão. Quando o abrem, lá estava ele, sentado em uma moto possante novinha.

-Por onde você andava moleque? Sua esposa não para de ligar querendo notícias suas. Já ligou gritando, já ligou chorando, mas o que foi que aconteceu desta vez?!

-Amanda, meu amor. Vai lá prá cima, liga prá nossa nora e diz que o caboclo tá aqui e que tá tudo bem. Quando ele esfriar o cabeçote liga prá ela tá. Deixa a gente aqui quietinho um cadinho um pouquinho, pode ser?

A mãe sobe pisando duro, vencida. Mas visivelmente contrariada.

-Ehh pai! Cê vai pagar caro por essa aí.

-Vou pôr na sua conta mané! Tira o capacete, pega uma cerveja prá mim e abre uma prá você.

Só depois que bebeu é que teve coragem de perguntar:

-Ué pai, voltou a beber? Não estava com a ambição de virar pastor e tudo mais?

-Tá me vendo no bar? Tá me vendo virar um litrão de 51? Não! E você falou tudo, aqui acaba a AMBIÇÃO de ser pastor. Além do mais tô bebendo umas cervejas na garagem da MINHA casa, com o MEU filho. Que aliás depois de tomar a próxima lata está interditado de sair aqui de casa! Vai ter que ir daqui direto para o serviço.

-Quer dizer que o senhor está voltando a beber para me ajudar? Que honra!

Bebeu toda a lata de uma vez.

-Os sacrifícios que a gente não faz pela nossa prole, outra que você vai ter que me pagar, mas esta uma caixa de cerveja só quita.

Deram bastante risada

-Agora me conta, o que é que aconteceu dessa vez?

-Ahh pai. Cheguei cansado, 24 horas no ar, só pepino, um monte de óbito. Enquanto estava comendo a janta que ela fez prá mim fui comentar que fiquei sabendo que o Marquinhos não tinha entregue nenhuma das lições de matemática das aulas on-line. Aí começou o quebra-quebra: eu dizendo que ela não faz nada, que deixa os moleques no celular e videogame o dia inteiro enquanto eu dou o sangue para pagar as prestações da casa e os caprichos dela. Ela retrucando e me xingando. O volume da discussão foi aumentando, aumentando. Quando eu vi era prato voando, as crianças chorando, eu socando a parede. Antes que eu fizesse besteira saí de casa.

-Fez bem filho, fez bem. Mas essa pandemia não está fácil. Criança já é difícil, trancada em casa então, piorou! Você sabe que eu trabalhei dez anos em enfermaria de internação de autista e fazia plantão extra em enfermaria psiquiátrica de infância e adolescência. Os médicos que atendiam os autistas também eram assistentes na parte ambulatorial. Viviam reclamando que a medicação que sempre acabava antes era a periciazina, que não ajudava em nada na doença, só fazia a criança dormir. Eles diziam que as mães inventavam as desculpas mais estapafúrdias para pedir que eles fizessem receitas extras: os vidros quebravam misteriosamente nas mãos delas, rolavam das bolsas, as crianças jogavam fora, até os nóias da comunidade roubavam. E não desse prá ver, era choro, barraco, cena. Eu mesmo presenciei algumas.

-Kkkk, eu imagino! E eu sei que meus moleques não são moleza. Os dois conseguem brigar o dia inteiro se deixar. E o Marquinhos é só malandro. Já o Pedro não para um segundo, se pelo menos a pré-escola voltasse.

-É... se não bastasse a besteira de fazer um filho em uma menina de quinze anos, resolveu premiá-la com outro quando ela fez 18, para comemorar a maioridade!

-A pai, vai começar esta ladainha de novo? Cê não cansa de apertar na mesma tecla, de brigar pela mesma coisa?

-Mas você tem concordar que é estranho, não é? A pílula pifar justamente quando eu e sua mãe resolvemos bancar a sua faculdade de enfermagem. Não faz essa cara! Eu e sua mãe amamos nossos netos, mas... é no mínimo... suspeito.

Os dois dão um longo gole em suas cervejas. O filho mexendo no celular e o pai olhando para a moto nova.

-Hei, péra um pouco! Você não está trabalhando em uma UTI e em um PS?

-É, eu me formei na hora certa! Tá chovendo proposta de emprego! Tô só esperando pegar um pouco de experiência para pegar outro que pague mais.

-É, eu já fiz essa vida filho. Sei como é. A gente ganha bastante, sonha muito, trabalha que nem louco. Só tem um detalhe, a última coisa que a gente se preocupa quando tá assim é com lição de filho. Como você ficou sabendo das do Marquinho?

-Oh pai, que desconfiança é essa?

-Fala moleque!

-A professora dela foi colega de turma da Maristela. Fez faculdade de Matemática e Licenciatura. Dá aula na escola particular que a gente matriculou ele. Eu conversei com ela pelo Facebook.

-Ahhh. Ela é sua amiguinha no Face! Que bonitinho! Deixa eu ver a cara da fulana. (o filho mostra o celular para o pai com relutância) Bonitona, hein mano! Peitão! Deve ser bem mais interessante conversar com ela do que com sua mulher.

-Porra pai, qualé?!

-É filho, a vida é foda! O segredo de um casamento é construir uma vida juntos. Agora você é enfermeiro, chefe, nível superior, dois empregos... Das duas, três: daqui a pouco eu ganho um novo neto, uma nova nora ou os dois juntos.

Fez-se um silêncio longo e constrangido entre os dois.

-Eu e sua mãe pagamos seu curso de técnico de enfermagem e sua faculdade porque não queríamos que um filho fora de hora comprometesse o teu futuro. Só que agora é a vez dela. Você vai sair de um dos empregos e vai ajudar a cuidar das crianças enquanto ela faz alguma faculdade que a gente vai pagar.

-Tá maluco pai!

-Você não gostou quando ela pegou no teu canudo antes de pegar o diploma dela? Gostou, não gostou? Só que na hora de segurar o rojão, eu e sua mãe, que não aproveitamos nada da festa, ajudamos a pagar a conta. Agora, olha só, nós amamos aqueles bacuris que você tem com ela. A tentação de fazer merda é grande demais e vocês já provaram que resistem a tudo, menos a uma tentação! Você nos deve essa e a gente vai fazer ela dever também.

O filho entornou outra lata de cerveja de uma vez só.