Incidente de Percurso

Era uma manhã fria, convidativa para mais alguns minutos sob as cobertas, em quarto quente e aconchegante, que já me deixava saudoso de tê-lo deixado; mas tinha um compromisso agendado. Como de hábito, tinha reservado as terças-feiras para atendimento aos novos clientes. Não conhecia a paciente, mas revisei a agenda no dia anterior e lá estavam, entre outras minuciosas anotações feitas pela eficiente secretária, a quem me referia como “minha assistente”, anotações das mais elementares, como nome, idade, ocupação profissional, etc., acrescidas de observações que muito me ajudavam na primeira avaliação.

Era cedo, sete e meia da manhã, e como a consulta estava marcada para nove horas, resolvi ir pela orla, gozando o ar puro, brisa agradável vinda do mar, dirigindo tranqüilo, mergulhado em pensamentos, refletindo e revolvendo coisas do passado que me ajudaram a decidir-me pela carreira profissional.

De início, interessava-me pelos ensinamentos dos filósofos, embora meu senso crítico, que hoje posso avaliar como excêntrico e exagerado e me trouxesse certa revolta contra eles e permitia pensar que procuravam respostas nas causas exteriores e gerais, enquanto que eu achava que existia algo mais digno para se estudar, a psyche, ou a mente do homem. Sim, tudo me levava a crer que a carreira acertada para quem tem a preocupação em solucionar os conflitos da mente do homem, seria a psicologia.

O meu pai queria para mim um futuro prático. Achava que a psicologia não rendia dinheiro nem prestígio. Com o intuito de tornar o filho um médico, falava das vantagens de ter uma boa clientela. Argumentava como seria importante a função de obstetra, por exemplo, que ajuda as pessoas a virem à vida, com o que eu sempre contra-argumentava que os filósofos e psicólogos ajudavam as pessoas a parirem suas próprias idéias, além de sondar a alma humana em questões antagônicas como a vida e a morte, ainda a lidar com mais facilidade com a honra e até mesmo com o patriotismo, a moralidade - neste ponto sabia que estava atingindo em cheio os conceitos objetivos e corretos do meu interlocutor – enfim, fazer com que os seres humanos possam ser entendidos por eles próprios e descobrir que o homem é sua alma, e não o corpo, pois o que manipula o corpo é a alma.

Eram sempre discussões alongadas, argumentos e contra-argumentos, de ambas as partes. Hoje me pergunto se meu pai tinha consciência de que me ensinava a dialética, ou seja, a arte de dialogar progressivamente, para provar as coisas. Ele se autodenominava filósofo com o argumento de que o sábio é aquele que tem consciência de que sabe muito pouco e que as opiniões não são verdades, pois não resistem ao diálogo crítico. Muitas vezes, em nossas conversas, me sentia apanhado numa complexa linha de pensamentos e ficava totalmente envolvido em suas palavras e argumentos.

Para não dar o braço a torcer e fomentar mais ênfase aos debates, eu o denominava sofista, pois estes foram mestres da oratória, que vendiam para os cidadãos suas habilidades com o discurso. Assim, se encarregavam de defender a opinião de quem lhes pagasse bem. Acreditavam que as verdades vêm do consenso entre os homens.

Ia eu mergulhado em tais pensamentos e recordações quando um carro, inesperadamente, me dá uma cortada. Meto o pé no freio, estancando o carro, e a frenagem assusta os poucos e sonolentos pedestres que por ali passavam. Fico furioso!

Após um breve momento me refaço do susto, porém continuo furioso em constatar o absurdo de quase bater, numa rua vazia, por causa de um irresponsável motorista, quem sabe algum bêbado curtindo o final de uma noitada.

Mas a coisa não poderia ficar por isso mesmo. Resolvo tomar providências. Movido pela indignação, acelero e parto em disparada no encalço do irresponsável.

Consigo alcançar a criatura, que providencialmente ficara detida num sinal fechado. Minha raiva e indignação tomam corpo, abro o vidro e estou pronto, tal qual um artilheiro que aponta seu canhão para o campo inimigo, na ânsia de descarregar meu ódio. Não consigo, porém, ver o condutor do veículo, pois além de um irresponsável, provavelmente tratava-se de um covarde que se esconde atrás de um vidro escurecido, em busca da impunidade de seus atos. Não faço por menos, meto a mão na buzina, dou sonorização à minha ira.

Sem recurso, vejo o oponente se render e abrir lentamente o vidro. Deparo-me então com uma jovem com cara de quem nada fez, com risinho e um acenar de mão como que a tentar uma aproximação ou sei lá o que. De minha parte, não estou para conversa ou qualquer tipo de retratação, prontamente dou início ao meu metralhar verbal, começando por: - sua irresponsável, incompetente e, além de tudo, uma grande cínica.

Meu descontrole toma lugar ao equilíbrio e bom-senso, não deixando de recorrer até mesmo aos palavrões. Arremesso tudo mais que meu cérebro consegue lembrar e minha indignação esbanjar de imprecações. Ela sai da aparente apatia e revida com algumas inteligíveis palavras, já não me lembro quais, convenhamos, naquele momento o que menos desejava era ouvi-la. O sinal finalmente abre, ela prossegue seu caminho, eu acelero e ainda corto a frente dela para lançar-lhe mais um olhar, só que desta vez com todo desprezo por uma criatura tão insignificante.

Sigo veloz em direção do consultório, pois com tal incidente já havia perdido algum tempo e já estava encima da hora marcada para atender a cliente agendada, estaciono o carro, me sinto mais calmo e me vem a incrível sensação de que tinha me vingado daquela irresponsável. Entro em minha sala, sento-me, pego a ficha da cliente agendada, examino as anotações feitas e aguardo sua chegada. O interfone toca, era a “minha assistente” comunicando que a pessoa agendada já havia chegado e aguardava ser chamada. Confiro a ficha para constatar o nome da paciente, Karina. Não há tempo para maiores leituras das anotações. Batem à porta. Abro....

Gelei. Senti um arrepio de terror. Era ela! A criatura que quase estraga minha agradável manhã. Sim, era aquela mulher que me deu uma tremenda fechada, a quem me dirigi com toda minha ira verbal.

E por questão de segundos retornei aos meus pensamentos iniciais da narrativa, lembrei-me das conversas com meu pai e suas palavras ecoavam em minha mente: “É impossível o homem querer viver o mal conhecendo o bem, ou querer viver o desagradável se pode viver o agradável. Mas, ao mesmo tempo, algumas dores imediatas ocasionam ganhos futuros. Muitas vezes, pode ser a salvação da vida, ou no mínimo ocasionar uma vida agradável. As ações erradas decorrem apenas da ignorância. Ninguém punirá as pessoas que tem algum defeito sem ter culpa - como a feiúra ou a baixa estatura -, mas alguém que se apresenta injusto é punido”. Seria este o momento de minha punição por ter sido injusto com aquela criatura? - me questiono. E em minha mente a voz de meu pai continuava reboando como um peso do passado. “Para ser justo, ao cidadão deverá ser ensinado, pelos pais, desde pequeno a ser racional”. Sim, meu pai tentara me instruir a não ser irracional. Já começando a admitir que falhara, voltei à realidade presente.

Dirigi-me à cliente na mais perfeita educação, pronunciei seu nome de forma bem cadenciada, estendi-lhe as mãos, que foram prontamente acolhidas e pude sentir as suas mãos entre as minhas, no mais pacífico acolhimento. Conversei com voz calma e modulada, tentando disfarçar o meu embaraço. Parece que deu certo. - Não teria ela me reconhecido ou teria sido suficientemente educada?! - A verdade é que não comentou nada.

Atendi-a muitas outras vezes, sem nunca tocarmos no assunto. E, a título da verdade, devo confessar que ansiava sempre pelo próximo atendimento, o que decorria na mais perfeita ordem profissional. No entanto, passei a ficar mais atento, principalmente ao seu modo de vestir e ao seu sorriso disfarçado, toda vez que elogiava o seu bom gosto no trajar.

Hoje, já passados alguns anos, posso admirar a dedicação e o carinho com que Karina trata os nossos filhos e cuida de nossa casa sem, no entanto, deixar de exercer sua vida profissional. E com imensa satisfação ainda constato que meu pai, em seu senso prático, estava cheio de razão quanto à carreira que sempre almejara para seu filho de se tornar um médico. Seus argumentos de que seria importante a função de obstetra pela nobreza de ajudar as pessoas a virem à vida foram fartamente comprovados por Karina, que possui uma considerável clientela.

Laerte Creder Lopes
Enviado por Laerte Creder Lopes em 08/11/2007
Código do texto: T727937
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