Nunca é tarde para amar

Todos os dias paro em frente à janela do meu modesto apartamento, nesse conjunto habitacional popular, daqueles tipo Minha casa Minha vida, e contemplo, daqui de dentro, solitariamente, através das persianas empoeiradas, crianças e alguns poucos corajosos brincando nas áreas de convivência. Estou isolado há quase um ano, sozinho, devido a pandemia da Covid.

Meus pais se refugiaram no sítio da família, são aposentados, e me deixaram aqui. Trabalho em home-office. Não sei o que é pior: a sensação de medo, insegurança, indignação (sim, o governo vem vacinando a população a passos de tartaruga). Ainda bem que meus pais já receberam as duas doses da Pfizer. Tá passada?!!! Mas, mesmo assim, preferiram não arriscar e ficaram no interior curtindo a natureza. Errados não estão!

Saio de casa apenas para fazer compras no mercado, praticar algum exercício físico ao ar livre ou resolver algum problema no banco. Sempre de máscara PFF2, é claro.

Converso com meus amigos todos os dias pela a internet, via WhatsApp ou Skype. A saudade é grande, mas evito sair para os happy hours de antes. Toda sexta-feira íamos a Danger. Não sou pessimista, apenas precavido, quero muito meu antigo normal e reviver minhas farras de dois anos atrás, sem nenhuma dor na consciência.

A vida sexual e/ou amorosa, então, nem se fala! Há quase ano que não transo com ninguém... sinto falta, não vou mentir. Minha autoestima anda no chão, engordei 15 quilos e preciso emagrecer. A vida do adolescente melancólico não tem um dia de paz! Daqui a pouco, ninguém mais vai me querer... o mundo gay é cruel demais.

Outro dia, eu vinha chegando da caminhada na avenida próximo aqui de casa e, ao subir as escadas, me deparo com um garoto, interessantíssimo, do jeitinho que eu gosto, filho da vizinha evangélica e mau humorada do AP ao lado. Ele estava saindo, fechando a porta, quando cruzei com ele. Usava uma máscara de tecido preto. O cumprimentei, mas ele nem confiança. Entrei em casa e o vi saindo na sua moto, pela janela.

Alan, como ele se chama, é alto, magro porém muito gostoso, com cabelo preto em corte moderno. Deve ter, no máximo, 20 anos. Malhava na academia que eu treinava, mas eu parei de frequentar. Minha crise de ansiedade não permite mais eu fazer certas atividades como antes. Sinto-me muito inseguro.

Ironicamente, agora vejo Alan passar por mim em algum lugar do condomínio quase todos os dias. Quase, porque antes era bem raro eu vê-lo. Alan aparenta ser bem tímido, mas usa umas roupas bem descoladas e acho isso muito massa nele.

Sempre tento me aproximar, puxar conversa, mas na hora H, eu travo, não tenho coragem. Em outros tempos, já estaríamos conversando pelo Whats ou, quem sabe, namorando! Ah loucaaa.

Nem só de delivery vive o jovem contemporâneo. Enjoei pedir pizza ou hambúrguer todo dia. Então, resolvi fazer, para o almoço, um omelete com três ovos que tinha na geladeira. Minha receita leva farinha, mas pasmem! Acabou!

O mercado fica a cinco quarteirões de casa, e eu já tinha quebrado os ovos na tigela, então vi nessa minha falta de atenção a oportunidade perfeita de pedir um pouco de farinha emprestada a vizinha, mãe de Alan. Com sorte, ela não estaria em casa e ele me recebesse.

Assim o fiz. Sai com meu short colorido bem afetado nas cores do arco-íris, de máscara branca, e bati à porta ao lado. Quase como uma predestinação, Alan abriu, perguntando quem era. Expliquei que precisava de uma xícara de farinha de trigo e ele, todo solícito, foi pegar.

Ele estava sozinho. Fiquei esperando no hall de entrada e, quando ele retornou com a farinha, pedi para ele tirar a máscara para que eu pudesse vê-lo melhor. Ele estranhou, é obvio, mas tirou e deu um sorrisinho maroto como quem já entendeu tudo. Agradeci pela farinha e sai. Tive sorte, porque assim que entrei no meu AP, ouvi a voz da mãe dele chegando.

Um mês depois, mais ou menos, encontrei Alan de sunga nadando na pequena piscina de água esverdeada na área de lazer do condomínio. Ele estava acompanhado de uma linda moça loira entediada, que estava de biquíni, mas não queria entrar na piscina, provavelmente para não molhar os lindos cabelos escovados.

Ao passar, os cumprimentei por educação. Ele respondeu com um leve aceno de cabeça e ela me ignorou totalmente. Alan me ignora ou finge alguma indiferença comigo. Queria descobrir, pois nunca fiz nada para ele. Ok, estou muito interessado nele, é verdade e não nego. Nesse mesmo dia da piscina, à noite, o encontrei parado, fumando, na entrada do condomínio num local escuro e vazio. Era mais de meia noite.

Eu caminhava normal e o ignorei de propósito. Chega de ser humilhado por quem a gente deseja. Já ia subindo as escadas, quando ouço um assovio. Era ele, que me chamava até onde estava. Confesso que não imaginava que ele fumava, tendo em vista que a mãe dele é crente, mas ele me disse que não era. Alan foi direto ao ponto: perguntou-me o porquê de eu olhá-lo tanto, o que eu via de interessante nele. Elenquei tudo que me atraia nele, sendo bem sincero e direto.

Ele apenas olhou meio torto e disse que não curtia. Até me deu uma esperança, confessando que tinha curiosidade em saber como é beijar e transar com um homem. O papo durou uns trinta minutos. Alan usava uma jaqueta de jogador de basquete. Nunca o tinha visto tão de perto e com tanta atenção como naquele momento. Ele beirava a perfeição, quase um deus grego. Quando finalmente ia me retirando, Alan me chamou mais uma vez, puxando levemente meu braço até ele.

O beijo acabou rolando. Foi lindo, mágico e inesquecível. Meu medo de me contaminar com coronavírus passou imediatamente, pois sabia que Alan só saia de casa de máscara. Seus lábios carnudos molhados, sua língua avexada, seu hálito doce e refrescante me deixaram excitado de tal forma... Acabamos dormindo juntos naquela noite.

Estávamos apaixonados, Alan confessou que também sentia algo por mim, mas tinha receio de demonstrar. O pedi em namoro meses depois. A pandemia quase cessando, nossas vidas precisa voltar ao que era. Precisamos recomeçar do zero. E eu resolvi recomeçar com Alan.

Patrick Sousa
Enviado por Patrick Sousa em 23/06/2021
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