AS TRÊS MOSQUETEIRAS

Alice acordou tarde – havia tomado um calmante na véspera, embora soubesse que não devia fazê-lo, ia acabar dependente – e ficou observando as listras douradas que o sol, filtrado pelas persianas, produzia nas paredes de seu quarto. Julgou que talvez fosse bom telefonar para Tânia, mas, quase ao mesmo tempo, considerou que não saberia o que dizer. Como esclarecer as coisas? Enrolou-se no cobertor, aconchegou-o até o pescoço, olhos fechados como a buscar concentração, corpo amolecido na tepidez que lhe proporcionavam as cobertas.

Pairava naquele estado indeciso, quando Maria Lúcia, a Malu, telefonou.

- Vens hoje à tarde?

A voz animada que chegava até ela, pressentia até os trejeitos, o sorriso de mostrar os dentes alvos, graúdos, os gestos... Impossível Malu, querendo saber da viagem, pormenores, mil pormenores vividos e acontecidos naqueles dois meses em que havia permanecido fora, em que as três deixaram de lado a freqüente convivência, tão freqüente como se não pudessem viver separadas.

- Vou avisar pra Tânia.

Levantou-se devagar, diante do espelho viu sinais de tensão no seu rosto, o olhar melancólico. Sentia-se cansada, ainda não se havia recuperado da viagem Rio/ Pelotas. Se fosse apenas o trajeto aéreo, mas havia depois mais três horas de estrada para vencer. Enfim, retorno aos pagos. E, agora, estivesse como estivesse, o jeito era enfrentar os problemas com a cara e a coragem. Como tinha o hábito de dizer seu pai.

Eram amigas desde a época em que cursavam o segundo grau. Aliás, Tânia e Malu já vinham juntas do fundamental, ela as encontrara mais tarde, e a amizade se havia fortalecido aos poucos, nos estudos em conjunto, nos recreios, e, sobretudo, nas festinhas a que compareciam. Nos fins de semana ficavam várias horas conversando, botando conversa fora, matraqueando a respeito dos rapazes, contando fofocas logo compartilhadas. Certamente devido à intimidade que se criara entre elas, apelidaram-nas no colégio de as três mosqueteiras.

- Que bobos! Três mosqueteiras! Quem vai ser o D’Artagnan?

Tânia sabia muito a respeito de literatura. Não só de literatura, mas das disciplinas em geral. Aluna muito estudiosa, isso era sabido e reconhecido na escola. E agora, balançando a cabeleira castanha, muito firme do alto de sua sabedoria, reclamava a existência do quarto elemento, sem o qual a história não se sustentava. Malu deu uma risada:

- Já sei! Serve o Carlinhos?

Foi buscar o irmão, que veio desconfiado, sem saber para que o chamavam, aquelas gurias que viviam sussurrando segredos entre elas.

- Queres ser D’Artagnan?

Tânia sentou-se ao seu lado e, embora ele soubesse algo a respeito, fez questão de contar-lhe a história dos três mosqueteiros e de como o quarto cavaleiro sobressaía entre todos pela sua intrepidez. Tão bem contou que Carlos aceitou o convite. Não só aceitou o convite, como reparou naquela mocinha que lhe falava fixando-se nos seus olhos.

Uns anos depois, quando Carlos se firmou no banco, resolveram morar juntos.

Tantas vezes haviam as três repartido bons momentos... Mesmo depois que se tornaram adultas, arrumaram trabalho, terminaram cursos, tiveram amores, continuavam os encontros, os papos gostosos, os jogos de cartas que chegavam por vezes a varar a madrugada. D'Artagnan acompanhava-as, quando podia, pois encarava trabalho e faculdade. Normalmente batiam o ponto na casa de Malu, ou melhor, na casa da família de Malu, por ser a mais confortável. A mãe circulava pela sala, oferecendo um ou outro quitute. Elas curtiam aquela velha amizade.

- Estamos te esperando. Vem de uma vez.

As meninas estão algariadas, querem saber das novidades. Alice enfia o casaco, pega a bolsa e prepara-se para sair: revisão no cabelo, retoque na maquiagem, batom nos lábios. Sim, é vaidosa. Reconhece que é, agora um tanto sem graça. Durante a temporada no Rio, embora muito ocupada com as atividades do curso preparatório para a magistratura, tratava de não se descuidar. Produzia-se. Mesmo nesse momento, não dispensa certos cuidados. Apesar do constrangimento. Da tensão que lhe vinca a testa. Cobre o rosto com as mãos. Retira-as logo, dando-se conta de que vai borrar a pintura. Mas é que... Sabe que logo lhe farão uma série de interrogações, verdadeira sabatina. Não lhe perguntarão se o viu, isso ela mesma já informou por telefone. Questiona-se: como pode, ou seja, como puderam ambos fazer o que fizeram? Teriam bebido demais, quem sabe, naquela primeira vez, estavam solitários e carentes. Na verdade, Carlos e Tânia já se tinham separado quando ele se transferiu para o Rio. De qualquer maneira, tem certeza de que logo lhe farão a pergunta:

- E o Carlos? Como vai?

Uma incógnita para ela própria, o que dirá às amigas. Vontade de chorar, não sabe que explicação dar a si mesma, nem aos outros. Não aprendeu a mentir. Ao menos se Tânia já tivesse refeito a sua vida, mas não, ela com certeza ainda o espera. Traição, eis a palavra. Será que houve algum tipo de traição entre os mosqueteiros do rei? Um sorriso amarelo e desconsolado entreabre os lábios de Alice. Ela bate a porta e sai.

(Relançamento)