O não jamais dito
 
Faltavam 20 minutos para 17 horas. Era a quinta vez que ela olhava a hora em menos de 5 minutos. Estava muito ansiosa, era perceptível. Mas depois de uma semana de aulas e orientação pedagógica, ninguém podia culpá-la por querer ir para casa, era sexta-feira. Para ela o termo sextou nunca havia feito tanto sentido em sua vida de professora. Pela primeira vez em muito tempo não levava trabalho para casa.

Agora olhava o celular pela sexta vez. Ainda faltavam alguns minutos para que o expediente, enfim, terminasse. Respondeu ao questionamento de um colega, sim, tinha elaborado as provas. Riu da piada da amiga, não era engraçada, mas saber que teria dois dias apenas para ela e a família a deixava leve. E ela precisava mesmo se distrair para que os eternos 20 minutos passassem.

Isso era algo que irritava Vitória, o tempo. Quando estava atarefada, uma semana durava menos que meio dia. E quando ansiava por algo, 20 minutos duravam mais que um mês. Estava viajando em seus pensamentos quando ouviu a colega chamá-la, a sexta-feira havia chegado ao fim. Ela poderia gritar um SEXTOU ao mundo, mas preferiu apenas ir embora. Seu esposo já a esperava na portaria da escola.

Despediu-se de todos e caminhou até ao marido, um pensamento engraçado lhe surgiu nesse percurso. Ela havia vencido toda demanda de trabalho, agora sim seu nome fazia sentido: VITÓRIA. Uma vitória há muito tempo não conquistada. Cumprimentou o esposo, e já no carro falou o SEXTOU que não teve coragem de dizer na frente dos colegas. Surpreso o esposo perguntou o que era toda aquele empolgação. Um final de semana só deles.

No sábado, ela faria a faxina na casa e o almoço para família. A tarde ajeitaria as unhas e o cabelo para ir ao bar com o esposo curtir música ao vivo. Acordaria tarde no domingo e durante todo o dia assistiria a série que ela havia começado, mas por falta de tempo não vira mais que o segundo capítulo da primeira temporada. Apenas ela e o esposo deitados na cama, vendo série e comendo pipoca durante todo o domingo.

Ele ficou muito empolgado com o planejamento de Vitória. Há muito tempo a esposa não tinha uma folga. Se não estava ocupada com o trabalho da escola, estava fazendo o trabalho de uma ou outra pessoa que lhe pedia ajuda. Vitória não sabia dizer não. Mas não importava, eles tinham dois dias apenas para eles. Ela começou a cantarolar uma música em inglês e ele a acompanhou fazendo a segunda voz.

Já em casa, ela preparou o jantar e comeu ansiosa, apesar de comer vagarosamente, queria que o jantar terminasse logo, assistiria a pelo menos dois episódios de sua série. Seu esposo já estava a sua espera. Vitória era do tipo de mulher que valorizava a família. E estar com sua família era o que lhe ajudava a recarregar suas energias.

Você pode, caro leitor, não entender porque tanta felicidade em nossa professora por ter dois dias livres. Se você for professor, com certeza entende. Mas caso não seja ou não conheça nenhum professor, pense que esse profissional não tem um dia sequer de folga. Quando estamos fora da escola planejamos aulas e corrigimos provas e trabalhos, isso não dar para fazer no tempo destinado ao planejamento.

Além de tudo isso, precisamos estar sempre atualizados, e não pense que temos um tempo dentro de nossa carga horária para estudar. Fazemos isso em nossas noites e finais de semana. No caso de Vitória, uma demanda a mais consumia suas folgas. Era coordenadora de área e responsável por validar provas e instrumentos pedagógicos de todos os professores de sua área, cinco professores ao todo.

Depois de muito tempo sobrecarregada com tanto trabalho, ter um final de semana livre era algo muito importante para ela. Deitou com o esposo, os filhos estavam na casa dos amigos. Aquilo era sextar de verdade. Começaram a assistir a série, não era um história densa, mas era divertida. Ela estava relaxada. Então seu telefone tocou.

Quando ela voltou do telefonema, pediu para que o esposo pausasse a série. Não iria poder mais ver. Ele quis saber o que tinha acontecido. Ela resistiu, sabia que ele não iria gostar do que tinha feito, já haviam discordado algumas vezes sobre isso. Ele insistiu, então ela contou que iria corrigir o artigo da irmã. Um pedido que ela não podia negar, a irmã precisava entregar o artigo no dia seguinte, estava desesperada.

Começaram uma discussão, mas ele preferiu não seguir com a briga. Disse-lhe apenas que ela precisava aprender a dizer não. Um defeito que estava acabando com ela. Ninguém vive apenas para os outros, é necessário cuidarmos de nós mesmos. Vitória não discordava do esposo, realmente esse era um defeito que tinha. Não sabia dizer não. Negar ajuda a alguém ia contra o seu ser. Sentia-se obrigada a ajudar quem quer que lhe solicitasse auxílio.

Já era madrugada quando Vitória terminou a correção do artigo. Seu esposo por diversas vezes levantou da cama e a convidou a ir dormir, mas ela não foi. Não antes de terminar a correção do artigo, assim lhe sobraria mais dois dias livres. Quando ela foi para cama, seu esposo já dormia. Ela se deitou e esperou. Esperou... Inútil. O sono não veio. E ela amanheceu da forma como deitou, de olhos abertos.

A manhã de sábado foi muito estressante. A tarde, com muita dor de cabeça não foi ao salão fazer as unhas e o cabelo. E a noite, o esposo vendo que ela não estava bem, sugeriu que ficassem em casa. Iriam outro dia ao bar. Vitória agradeceu. Agora sim, poderiam continuar a série. Duas cenas depois ela estava dormindo. Ele deixou que ela dormisse, pois sabia muito bem o quanto ela precisava daquele sono.

Vitória acordou quase 7 horas da manhã, o café já estava pronto. Era um dia agradável, ensolarado e ela se sentia disposta. O esposo foi à feira e Vitória ao salão, sairiam a tarde para um happy hour. Claro que não tinha sido como haviam planejado. No entanto, um tempo juntos cantando suas músicas favoritas era o que precisavam para recuperar o tempo perdido com os nãos jamais ditos de Vitória.

A incapacidade de dizer não de Vitória era quase patológico. Ela reconhecia que tinha esse problema, que muitas vezes abria mão de si mesma para fazer favores para as pessoas. Muitas vezes fora injustiçada por querer sempre agradar, e outras vezes decepcionou-se muito. Mas algo nela não deixava que dissesse não.

Ao retornar da feira, o esposo viu que Vitória estava cuidando da filha de sua sobrinha, uma criança de uns 5 anos. Não quis perguntar nada para não começarem a discutir novamente. Almoçaram, passaram a tarde. E Vitória sentiu que deveria se justificar, disse ao marido que a sobrinha voltaria no fim da tarde e que pediu para que cuidasse da criança.

Anoiteceu. A criança começou a ficar sonolenta. Vitória colocou a criança para dormir. E a mãe da menina não voltou no fim da tarde como prometera. Vitória e o esposo perderam o happy hour, ela não percebia que ao não negar os pedidos dos outros, ela estava negando seus próprios desejos. Que ao ajudar excessivamente os outros, ela deixava de ajudar a si mesma e ao seu esposo e filhos.

Vitória estava coando o café, às 6 horas da manhã da segunda-feira. Alguém bateu na porta, era sua sobrinha. Pediu mil desculpas por não ter voltado na tarde do domingo como prometera, o carro tinha quebrado, segundo sua sobrinha. Vitória disse que não tinha problema. Vestiu-se e foi trabalhar. A alegria do sextou barrou nos favores que ela não soube negar. Enquanto a ela e ao esposo Vitória negou o fim de semana.

Mais cinco dias de trabalho, correria e muitos não silenciados. Ela não percebe, mas o não que ela nega aos outros ela dar a si mesma. Passa segunda-feira, terça-feira... de novo a sexta-feira chega, novamente Vitória olha o celular ansiosa para mais um SEXTOU, precisa fazer tudo o que não conseguiu fazer no final de semana anterior. O telefone toca... alguém pede para que Vitória traduza um texto para o inglês. De novo seu final de semana barrou na sua incapacidade de negar o favor. É claro que ela não disse NÃO.
Nilson Rutizat
Enviado por Nilson Rutizat em 30/06/2021
Código do texto: T7290030
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