O apartamento do Sô Libério

Quando a porta se abriu grossas toras de lenha queimavam no fogão que não era mais vermelho pois estava tomado pela gordura e sujeira normal naquela situação. Em outros tempos àquele fogão era vermelho, lisinho, natado, trabalho feito pelo Tião, melhor pedreiro que o Senhor Libério conhecia, e que sempre fazia outros trabalhos no sítio. Quando decidiu fazer o fogão para ter mais conforto em seu apartamento, quem o conhecia estranhou, mas era fundamental para se sentir bem lá.

O fogo, que estava mais baixo, mantinha aquecida a comida do almoço nas pesadas panelas de ferro. Na última trempe da chapa estava a chaleira com o café requentado, havia sido feito de manhã. Manhã especial, pois Dona Carmem, a viúva vizinha do apartamento ao lado, por quem Libério nutria uma paixão secreta, apareceu atraída pelo estalido dos gravetos que deram origem às primeiras faíscas. Fora “chamada” também pelo cheiro do café fresquinho.

Quando a porta se abriu, pouco depois do almoço, ele estava com o pito de palha na boca, mesmo apagado, e olhava entretido para o lado de fora, onde havia um tanque de lavar roupas, mesmo lugar onde guardava em outro canto a lenha que trazia de longe e que mantinha o apartamento tão quentinho especialmente no inverno. A varanda dava para “os fundos” do condomínio. De lá, ele via o alto muro que cercava todos os prédios, não conseguia ver além pelo fato de morar no térreo, na residência que dava para o lado de trás do prédio do bloco sete.

O porcelanato do piso, outrora branco e brilhante, agora era fosco, e algumas placas que se soltaram foram suprimidas por um cimentado rústico, que o próprio morador fazia quando precisava. A camionete devinte, única na garagem do condomínio em que predominavam carros novos, mesmo que alguns populares, carregava lenha, cimento e as verduras ele trazia da roça para vender na cidade todos os dias, menos domingos e feriados.

A mesa feita de madeira pura estava limpa e com um cesto de frutas escassas. De longe, parecia tudo misturado com o florido forro de chita que cobria o móvel. Libério se lembrava muito bem o dia em que ganhara de Dona Carmem o forro vermelho. Era um domingo, ou era um feriado? Passaram uma agradável manhã regada a boas conversas e altas gargalhadas. Foram momentos marcantes um com o outro no relacionamento que nunca havia passado de uma boa amizade, não que os dois não quisessem mais, porém nenhum deles tomava a iniciativa para ir além.

Ótimos momentos, que ele não podia ter com mais ninguém ali. A bem da verdade todos o queriam longe do condomínio. O jeito “diferente” de viver, em nada combinava com o estilo do lugar, habitado por pessoas de classe média e muitos se achavam muito mais do que eram ou tinham. Fumaça saindo de dentro de um apartamento, mesmo sendo para os fundos e a velha caminhonete sempre empoeirada, além do jeito caipira do “Sô Libério” incomodava mesmo aos que moravam em prédios distantes dentro do condomínio.

Para não ser mentiroso, os moleques que jogavam bola na quadra também gostavam dele, isso por causa dos convites para ajudarem a descer coisas da devinte vermelha e levarem pra dentro do apartamento. Essas ajudas sempre rendiam notas de dez. Era só a Chevrolet chegar cheia que já ficavam por ali, bem próximos esperando o convite.

Poderia viver no sítio, mas queria morar lá, exatamente no condomínio, gostava dali. Foi com muito custo que fora convencido por Camila, a filha médica, bem sucedida, diretora do Hospital a vir morar na cidade para não ficar sozinho na roça depois da perda da esposa. Como o tempo passa rápido, algo que aconteceu há 13 anos parece que ocorreu ontem.

Só que Camila não o visitava mais havia cinco anos, depois do desentendimento pelo modo de vida dele. O contato que tinha com a filha única era sempre por telefone e através de falas ríspidas influenciadas pelos vizinhos dele que iam até ao Hospital ou mesmo à casa da médica para reclamarem do pai.

Quando a porta se abriu era ela, que ainda tinha a chave do apartamento que dera ao pai, mas que estava em seu nome. Toda de branco, olhou com desdém para tudo no lugar. Sem dar mais que dois passos para dentro e sem fechar a porta disse que o pai tinha uma semana para sair do apartamento dela e voltar para a roça, pois não aguentava mais gente “enchendo o saco” por causa dele.

“O Senhor sai do apartamento, que vou reformar e vender isso aqui.” Ela virou as costas e foi embora com passos firmes e rápidos, de alguém que é importante e tem muitos afazeres, deixando o barulho do bater da porta atrás de si. O Senhor Libério acendeu o paiêro e continuou olhando para o lado de fora da varanda, exatamente como estava: “Tô eperano pra vê quem vai me tirá daqui.”