Verdade ou desafio: cansei desse jogo de quarentena

Nunca pensei muito sobre o impacto desse jogo até hoje quando reunida com 2 amigos de minha inteira confiança me perguntaram rodeados de suco verde e cerveja:

— Vamos jogar? — disse o mais alto.

E eu: — O quê?

— Que tal verdade-desafio? — perguntou o outro.

— Ué, se quiserem me perguntar qualquer coisa posso responder sem precisar de jogo — respondi.

— Argh, você não entende de nada mesmo, né? — e saiu irritado da cor do tomate que aparecia em seu prato.

No primeiro momento temi ter magoado a sensibilidade dele, num segundo momento pensei que não era boa coisa ele pegar o ônibus rolando coronavírus por aí e ainda cogitei correr pra oferecer uma carona, mas num terceiro momento imaginei: deixa ele com seu tempo pra decidir se vale a pena esse estresse, porque eu mesma faria isso...

Puxa! Tava indo tudo tão bem... fazia mais de um ano que não nos víamos; combinamos o local que buscaria eles, comprei até uma comidinha bem light pro meu amigo vegano (pois nessa pandemia ele disse que mudaria seu estilo de vida e que a carne o deixava mais estressado), separei as bebidas preferidas de cada um, gela da boa pro amigo mais alto e o suco de menta com limão e gengibre (sem adição de açúcar) que agora era o preferido do outro. Eu tinha imaginado tudo de uma forma tão diferente...

Fico me perguntando duas coisas: em que ponto da nossa amizade eu não deixei compreensível que detestava jogos? e quando perdemos a confiança e intimidade um com o outro?

Éramos inseparáveis desde a infância. Nossos pais se conheciam porque trabalhavam juntos na firma e vivíamos no fim de semana na casa um do outro. Quando a escola começou a gente sempre dava um jeito de ir pro mesmo colégio e pra mesma sala e só nos separamos quando foi pra começar a faculdade. O mais alto quis Arquitetura, o outro queria Design e eu fui pro Jornalismo; ainda frequentamos um tempo a mesma universidade, mas a vida foi acontecendo, cada um foi pro seu lado fazendo suas escolhas profissionais e pessoais; mudando de emprego ou de cidade... ainda mantínhamos contato e a pandemia chegou.

Um ano e 5 dias.

Contei porque sempre fui a melhor dos três em memória, o que me ajuda bastante em minha profissão. 370 dias arrasados por um “verdade ou desafio”. Chega a ser ridículo.

— Tu é a maior vacilona — fala o mais alto rindo pra debochar de mim.

— Eu? — jogo um travesseiro do sofá nele — Foi você que veio com essa história de jogo, sabendo que eu não gosto.

— Tá, tá certo, mas ele também queria, dois contra um... —

Jogo outro travesseiro: — Dois contra um nada. “Verdade-desafio”? me poupe. Isso nem é um nome direito.

— Tu não teve infância. Esse é o jogo da galera, bebê — fala ele fazendo um gesto com as mãos (relembrando os garotos que se achavam na escola) me fazendo rir.

— Com o jogo da galera você quer dizer os quase trintões iguais nós, né? — continuo jogando as almofadas, rindo, do que agora virou a guerra dos travesseiros.

A campainha toca. Paramos nossa guerra. Ele fica em dúvida se vai ou não atender e assumo o caminho da porta com o coração palpitando. Droga. Eu não devia ter dito aquilo. Reformulo: droga, eu não devia ter dito aquilo daquela forma. Uma última olhada rápida pro meu amigo esparramado no sofá que dá uma piscadela pra me incentivar a seguir. Não faço ideia do que dizer, mas talvez um pedido de “Desculpa. Eu não sou boa com jogos e esse jogo não vale nossa amizade” seja bom pra começar. Abro a porta e fico sem palavras.

— Boa tarde. Aqui está, moça. Seu pedido já foi descontado. Espero que goste do seu JLanche — diz o rapaz me entregando a nota fiscal junto com o cartão fidelidade e a nossa refeição, com a logo enorme da empresa numa blusa azul e com sua conhecida calça jeans desbotada, saindo em seguida.

A porta parece pesar toneladas quando fecho. Olho para àquele que está sentado ereto no sofá com as mãos cruzadas, batendo os pés com seu típico all star branco sujo em um ritmo leve e frenético no chão.

Havia chão?

Volto minha atenção para a embalagem em minhas mãos. Nunca recebi uma pizza de Marguerita tão sem apetite.

Srta Lopez
Enviado por Srta Lopez em 07/07/2021
Reeditado em 07/07/2021
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