Palavras

Primeiro capítulo.

Era uma tarde de verão daquelas que todos conhecem muito bem. Estava um calor infernal e Vic se encontrava sentada em um dos únicos lugares que ela realmente gostava - debaixo duma árvore no parque da cidade.Ela tinha cabelos escuros, encaracolados e tinha um rosto que parecia desafiar todos a todo momento. Estava lendo pela décima vez seu livro favorito enquanto confabulava a respeito da história. O parque ficava próximo a casa dela e por isso, ela sempre ia lá. Era um daqueles lugares em que quase todos os brinquedos estavam estragados e, só restava cantos como o dela para descansar em paz- a cidade inteira era assim, para falar a verdade.

-Oi- disse Lucas enquanto se aproximava. Ele tinha cabelos castanhos, ondulados que gostava de exibir. Sentou-se ao lado dela e ela reproduziu um barulho com os dentes semicerrados que se parecia com um oi. Ele já sabia o que aquilo significava- seu pai a havia expulsado de casa de novo. Eles tinham meio que um código secreto. Para tentar relaxar um pouco, ele puxou um assunto- o que você tá lendo?- ela mostrou para ele. Era uma história de duas garotas que haviam perdido a mãe quando pequenas e foram criadas pelo pai e que, quando crescem, descobrem a verdadeira história por traz da morte da mãe e sobre sua vida.Era uma história bonita. Quando pequena, a mãe de Vic costumava ler ela antes dela dormir. Aquele livro era um segredo dos velhos tempos, dos bons tempos guardados até hoje na memória de Vic.Ele já tinha lido aquela história antes, mas adorava quando Vic a lia para ele, então pediu para ela, que aceitou e começou a ler sua parte favorita.

- Maria se sentou a escada onde costumava pensar, já não era mais a tristeza desconexa que preenchia seus pensamentos, mas sim o sentimento de amor, que agora, ela sabia exatamente o que era- estar ali junto da sua irma e do seu pai. Depois de próxima ao fim da vida, ela entendia que não precisava se preocupar. Tinha tudo o que tinha e aquilo lhe bastava- Vic continuou a ler deitada no colo de Lucas, seus pensamentos simplesmente se esvaíram e só restava eles e aquele momento. Não tinha mais a cidade chata, nem os pais problemáticos, mas somente eles. Quando deu por si, já era seis; estava o dia todo fora e logo seu pai iria sair cambaleando pela rua a procurá-la. Ela não entendia, ele não a queria lá, mas também não a queria em lugar nenhum. As vezes ela sentia como se fosse um peso, como se ele não quisesse que ela existisse.Então ela deu tchau para Lucas e preparou-se para ir para casa- tchau- mas, antes dela ir, ele a pegou pelos braços e deu-a um abraço tão profundo que ela começou a chorar.

-Vai ficar tudo bem- ele somente disse.

-As vezes eu queria desaparecer.

-Vamos juntos- ele disse e ambos começaram a rir. Então se despediram e foram embora para casa.

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Lucas

A noite estava sombria e eu não gostava disso. As casas me fitavam enquanto eu passava, elas tinham todas o mesmo tom- um verde claro meio estranho. Quando cheguei em casa, a primeira coisa que fiz foi cumprimentar minha mãe e ir ajudá-la com os deveres da lanchonete. Era domingo e ela tinha que deixar tudo preparado para logo cedo. Nós tínhamos uma lanchonete que ficava na garagem da nossa casa. Quando meu pai foi embora, ele vendeu quase tudo que possuíamos, nos restou só a casa e alguns móveis. Minha mãe teve que se desdobrar para cuidar de mim sozinha. Aos poucos, ela se reconstruiu e agora temos tudo o que temos. Estamos no início, mas trabalhamos para tudo dar certo.

-Filho, como foi o dia hoje?

-Foi bom, mãe. Encontrei com a Vic, fazia um tempo que a gente não se via assim. Passamos a tarde conversando e lendo.

-Eu gosto dela sabe, filho? Como ela tá? Faz tempo que ela não vem aqui.

-Ah, mãe, ela não está muito bem, o pai dela a expulsou de casa pela manha e a obrigou a ficar o dia inteiro fora de casa. Ela não sabia o que fazer, então foi para o parque. Eu tava andando pela rua e vi ela lá.

-Eu não consigo nem imaginar pelo que essa menina esteja passando, deve estar sendo muito difícil.

-Verdade- quando acabamos de arrumar as coisas para o dia seguinte. Vou para o meu quarto, pego meu celular, coloco uma música e me deito. Viajo ao som da canção enquanto milhares de histórias passam pela minha mente. Abro as notas e começo a escrever.

Parte de mim quer ficar

Parte de mim quer ir embora

Parte de mim quer amar

Parte de mim quer ser agora.

Paro de escrever, sem ideias, volto a me deitas e finalmente durmo.

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Vic

Vou andando pela cidade como se estivesse indo para um tribunal, todos parecem me olhar e me julgar, como se nesse momento eu fosse a pior pessoa do mundo. Pior por ter deixado minha mãe sozinha com aquele monstro sem nem sequer pensar no que pode acontecer. De repente, o medo de chegar em casa toma conta de mim e sou somente eu e o peso nas costas a seguir em frente por essa rua esburacada.

Quando chego em casa, começo a ouvir os gritos.

-Amor, amor, espera ela já vai chegar, não precisa ir atrás dela.

-Eu já disse que eu vou e vou arrastar essa pirralha para dentro de casa, nem que seja pela orelha.

-Já cheguei, que barulheira é essa? Dá para ouvir lá de fora.

-Vem cá, sua pirralha metida a besta, já falei que você não pode ficar o dia todo fora de casa desse jeito- disse ele a pegando pelo braço e a empurrando no sofá.

-Você que me expulsou de casa, o que eu podia fazer?- ela disse e sua mãe se aproximou e tentou tirá-lo de cima da menina, mas não conseguiu.

-Sai para lá- disse para a mãe e então se voltou para a garota na sua frente- não vem com essa para cima de mim , não, quando eu falo, você precisa me obedecer.

-Vou ver se eu penso nisso da próxima vez- e sai para o meu quarto.

-Essa menina me dá nos nervos- escutou ele falando enquanto saia da sala. Olhou para trás, sua mãe estava o abraçando? Como ela podia fazer isso depois de tudo que ele fazia com elas? Eu não conseguia entender. Fazia de tudo, mas não entendia como minha mãe ainda suportava ele. As vezes tinha vontade de contar tudo para alguém, mas tinha medo que a jogassem contra a parede- dizendo coisas como ''fez por merecer'' ou até ''tinha que acontecer isso mesmo, família desmiolada''. A única pessoa que sabia que podia confiar no Lucas, ele era seu amigo desde a infância e sabia de todos os seus segredos- conhecia os tempos bons e os ruins. Quando o pai dele fora embora, eu estava lá do lado dele e agora, com essa situação, ele sempre estava aqui para me apoiar.

Peguei meu celular, conectei ao fone de ouvido e comecei a escutar uma música. Fechei a porta e então dancei sem rumo, com passos desengonçados, não como se minha vida dependesse disso- muito melhor- como se eu fosse a única viva e somente vivesse para isso.

-When the night, has come, and the land is dark, and the moon is the only light we'll see- cantava baixinho, passei a noite presa nisso.

Quando dá cinco da manha, o vejo saindo pela janela do meu quarto. Sinto um alivio tão grande pelo fato de não precisar cruzar com ele quando saio que não sei nem explicar. Começo a me arrumar para ir para a escola e saio antes que minha mãe acorde. Não queria passar por nenhum problema hoje, planejava sair cedo, voltar cedo e ficar o dia inteiro trancada em meu quarto.

Vou andando pela rua, o dia ainda não clareou, então sei que tenho algum tempo ate chegar horário de ir para a aula.Vou para o parque. Me sento no chão e me ponho a escrever: E se pudesse falar.../Nem metade do que eu quero seria dito/E se eu pudesse gritar.../Isso não expressaria o que eu sinto/E se eu pudesse chorar.../Descobririam, por fim,/O quanto minto.

Com repentina raiva, acabo apagando tudo que escrevi, não sei o que acontece comigo, não queria ser assim. Olho ao redor e percebo que já clareou, me levanto e vou para a aula.

A rua parece me engolir enquanto ando e tudo ao meu redor é palavra. Seja boa, seja ruim. As casas que me encaravam, já nem me olham mais e o silencio reina em minha mente. Continuo andando. Quando chego, percebo por que sempre gostei daquele lugar, era o único visivelmente e incrivelmente preservado da cidade inteira, talvez para não dar problema para o município. A cidade está caindo aos pedaços, mais nossa escola continua de pé. Boa solução. Entro e faço as coisas de sempre, bebo água, vou ao banheiro e respiro bem fundo antes de entrar na sala de aula. Assim que entro, sento-me na cadeira de sempre e espero.

No momento em que aula acaba, vou direto para casa, sem parar em lugar algum. Estranho um pouco que Lucas não apareceu hoje, quando chegar em casa mando mensagem, penso. Chego em casa, está tudo silencioso.Meu pai não está, nem minha mãe, corro para o quarto antes que eles apareçam e me tranco lá. Mando mensagem para Lucas.

-Oi, por que você não foi na escola hoje? Tá tudo bem?- pergunto.

-Tive que ficar cuidando da loja, minha mãe não acordou bem.

-O que ela tem?

-Somente uma dor de cabeça, nada demais, mas para garantir, fiquei com ela. Como foi com seu pai aquele dia?

-Péssimo, ele não tá nada bem. As vezes, eu sinto saudade de como tudo era antes, sabe? Antes dele começar a beber e virar esse monstro que ele é hoje.

-Acho que você deveria visitar a psicóloga da escola, Vic. Ela vai poder te ajudar como eu jamais pude. Se você quiser, eu vou com você- então guardo o celular e vou dormir. Quando acordo, já é de manha. Levanto e vou para a escola como todos os dias.

Dessa vez, assim que chego na escola, dou de cara com Lucas me esperando.

-Não vou.

-Por que?

-Não to afim de falar dos meus problemas com qualquer um.

-Não é qualquer um, é uma profissional que pode te ajudar.

-Se você não vai por você, vai por mim- paro e penso. O que vai fazer de diferença ir ou não ir? Falo que sim. Então, entramos. Ele me leva até lá. Chegamos e ele bate a porta.

-Oi, Fernanda. Como você está?- ele pergunta no momento que ela abre. Ela era uma jovem de cerca de 27 anos com cara de criança, tinha os cabelos claros e lisos, um rosto quadrangular e uma feição amigável. Não sei se eu gostava dela ou se estava assustada. Talvez os dois.

-Estou bem e vocês? O que lhes trazem aqui?

-Vim trazer essa moca para ter uma conversa contigo.

-Muito bem, sente-se- sem ter certeza se queria realmente fazer isso, obedeci e ela começou a explicar os procedimentos enquanto Lucas saía da sala -muito prazer, me apresentando direito, meu nome é Fernanda Lima e sou a psicóloga daqui. O que eu faço é simplesmente te ouvir, nada do que você falar vai sair daqui, com isso você não precisa se preocupar. Felizmente, eu tenho esse horário livre se quiser preenche-lo, é todo seu- e agora, o que eu faço? Me perguntava mentalmente. Vou aceitar, penso, por fim. Então, digo a ela, que continua falando- para começar, faremos um tipo de dinâmica, para que eu te conheça melhor. Fale um pouco sobre você e seus desejos.

-Bom, meu nome é Victoria Santos, Vic. Tenho 16 anos e estudo aqui nessa escola desde o fundamental. Tenho cabelos enrolados que frequentemente costumo gostar, mas hoje nem tanto. Um rosto bem comum. Sou relativamente alta, relativamente baixa, depende de que angulo você olha. O que mais amo nessa vida são flores, ler, ouvir música e meu melhor amigo. Viver me deixa desconfortável e eu não gosto nada da sensação.As vezes sinto que destruo todo os lugares por onde passo e resolvo ficar. Tenho medo de perder coisas. Quero ter uma vida melhor. Somente isso que desejo. Enfim, essa sou eu.

-Bom te conhecer, Vic. Você disse que estuda a muito tempo aqui, tem amigos por aqui?

-Conheço muitos, mas, de verdade, quase ninguém. Ninguém nunca se aproximou de mim e, falando sério, eu tenho medo de me aproximar das pessoas. Tenho medo de não gostarem de mim. Então, nunca chego perto de ninguém. Sério, a única pessoa que tenho uma amizade de verdade aqui é o Lucas e talvez a Marta da biblioteca. Ela é muito legal.

-Como você e o Lucas se conheceram?

- Em 2008, meus pais e eu nos mudamos para cá. Eu tinha cerca de 6 anos e ele uns 7. Meu pai tinha muitos conhecidos aqui e minha mãe achava uma cidade agradável. Um desses conhecidos era o pai do Lucas. Ficamos amigos meio que do nada, ele sempre ia lá em casa e eu na casa dele e nós nos divertíamos muito juntos. Com o tempo, essa nossa amizade só intensificou, sabe? Aconteceu um monte de coisa e... nós sempre estivemos juntos. Ele sempre me apoia e eu sempre apoio ele. Não sei o que seria de mim agora sem ele.

-Por que?

-Tem acontecido muita coisa, sabe? Nada tá fazendo sentido na minha vida ultimamente.

-Quer começar por onde?

-Falando sério, hoje, de lugar nenhum. Tenho medo.

-Medo de que?

-De que eu fale e as coisas se tornem mais reais e eu tenha que enfrentá-las.

-Vai acontecer de uma forma ou de outra.

-Eu sei- quando a sessão acaba, saio e vou direto para sala. Felizmente, Lucas não está ali para me ver chorar, mas isso me acende um alerta- a mãe dele passou mal de novo.

Vou para sala. Quando chego, não vejo ele de novo. Assim que saio, resolvo passar na casa dele. Vou de bicicleta e chego bem rápido. Ele morava bem perto, então foi fácil. Chego, mas ele não me atende.Resolvo fazer o que tinha quer ter feito antes, ligar.

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Lucas

Sinto um alívio dentro de mim por estar ajudando ela de algum jeito, mesmo que não possa ser fisicamente eu. Mesmo que eu não possa ajudá-la a se entender, Fernanda pode. Ela me ajudou a entender que não era culpa minha meu pai ter ido embora e feito tudo o que fez com minha mãe. Agora eu estava melhor e graças a ela e talvez um pouco de mim também. Quando percebo, alguém liga.

-Alo, Lucas? Sou cliente da sua mãe. Ela passou mal enquanto preparava meu lanche e tomou um tombo. Acho que ela estava tonta ou sei lá. Fechamos a loja e estamos chegando no hospital, teria como você vir para cá?

-Estou indo agora, obrigada por ligar- começo a me desesperar, o que será que aconteceu? Que droga, eu deveria estar lá com ela. Não deveria ter vindo hoje e deixado ela sozinha. Que droga, que droga, que droga.

Quando chego no hospital, sinto aquele cheiro inconfundível de novo- cheiro de medo. Talvez fosse eu, mas aquele lugar me dava a impressão de que todos sempre estavam com medo de algo, de alguma coisa que sabiam que não podia acontecer, mas em algum momento iria. Causava em mim um sentimento de raiva e talvez um pouco de rancor, não sei.

-Estou aqui para ver Paula Sanches, minha mãe.

-Preciso da sua carteira de identidade.

-Tá aqui- ela olha, anota algumas coisas e me devolve.

-Quarto 209, vira a esquerda, depois a direita e segue reto até o final.

-Obrigada- ela nem olha para mim de novo. Vou seguindo pelo caminho que ela indicou, parece que vou cair a cada passo que ando, mas continuo andando- como se estivesse indo para o abate.

-Oi, você é o Lucas?

-Sim, quem é você?

-Sou aquele cliente da sua mãe, o que te ligou. Ela tá ali. Resolvi te ligar, pois foi o único número que encontrei no celular dela.

-Tudo bem- bato na porta e um médico abre a porta.

-Bom dia, você é o filho dela, certo?

-Sim

-Nós fizemos alguns exames na sua mãe e o que ela teve foi um rompimento de um aneurisma cerebral, que é uma dilatação num vaso sanguíneo que leva o sangue até o cérebro.

-Ela vai ficar bem?

-Precisaremos fazer uma cirurgia de emergência que infelizmente, é muito invasiva. Será feita uma craniotomia para uma clipagem do aneurisma.Escolhemos esse método por ela não apresentar nenhum problema que comprometa a saúde dela e pela forma com que aconteceu. Acreditamos, que dependendo do andamento da cirurgia, ela ficará bem.Torcemos para que sim.

-Quando será feita?

-Estamos esperando os resultados de alguns outros exames, assim que ficarem prontos, avaliaremos melhor o caso e faremos e avisaremos, pode ficar tranquilo, tudo será feito com o maior cuidado possível- meu celular toca, enquanto ando para fora do hospital, atendo.Era Vic. Digo o que aconteceu.

-Minha mãe desmaiou no trabalho e um cliente a trouxe para o hospital. Ela tá com um aneurisma cerebral, vai precisar fazer cirurgia.

-Onde você quer que eu te encontre?- pergunta ela.

-Vamos para o parque.

Rapidamente chego lá e encontro Vic já a minha espera. Ela me abraça e eu sinto como se aquilo fosse realmente real, de súbito me vem a mente a imagem dela deitada naquela maca e tudo que eu faço é chorar.

-Não queria que tivesse acontecendo tudo isso, sinto como se fosse tudo minha culpa, eu tinha que estar ao lado dela. Ajudando ela- digo, por fim.

-Não fala assim, pois não é culpa sua. Ia acontecer uma hora ou outra, ainda bem que conseguiram descobrir o que era e vão poder ajudá-la- continuamos abraçados. Tenho vontade de perguntar a ela sobre a sessão, mas invés disso, peço ela para ler um pouco para mim. Ela pega em sua mochila uma cópia dos poemas de Álvaro de Campos e começa a ler o primeiro que abre: Tabacaria. Começa quase gritando.

-Não sou nada-ela continua de pé enquanto me sento- Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo- eu viajo em sua voz, que é doce e suave e ao mesmo tempo áspera e voraz. Quase me esqueço de todos os meus problemas durante sua leitura, esse é um dos superpoderes de Vic, fazer com que as pessoas se sintam bem, mesmo quando elas estão em seu pior momento, mesmo quando ela está no seu pior momento. Por um momento, sinto que não deveria estar me divertindo tanto e me culpo por isso. Ela percebe meu desespero e logo para a leitura, vindo para perto de mim e ficando em silencio. A melhor coisa é quando podemos sentar próximo a alguém, simplesmente em silencio, sem precisar preencher o vazio com mais palavras que, muitas vezes, não farão sentido, não, está tudo completo. Quando percebemos, já está tarde, então, vamos embora.

Acompanho Vic até em casa e, antes de entrar, damos um último abraço. Então, vou para casa e fico entre o silencio e a solidão. Ela não combina comigo, sou muito mais pessoas ao meu lado e o vazio dessa casa acaba me matando aos poucos.

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Vic

Entro em casa sem fazer barulho para que eu possa ir para o meu quarto tranquila, mas, antes que eu perceba, minha está a minha espera sentada no sofá. Ela parece abatida.

-Victoria, sente-se, preciso te contar uma coisa-ela olha para mim, seu olhar me assusta-seu pai sofreu um acidente de carro. Ele está na UTI- seu rosto parece gritar e percebo que é verdade. Não escuto mais nada do que minha mãe diz e logo, tenho um misto de sensações, não sei se choro, se rio, se entro em desespero. Num lapso de memória, lembro de tudo que ele fez para nós e começo a gargalhar, tão alto que se parece com um choro desesperador, acho que acabo confundindo os dois. Corro para meu quarto e tranco a porta, começo a andar de um lado para o outro. De um lado para o outro. De um lado para o outro. De um lado para o outro. Contando. 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 10, 9, 8, 7, 6, 5, 4, 3, 2, 1.

-VICTORIA, ABRE ESSA PORTA- minha mãe grita, eu não quero abrir, estava sozinha a muito tempo nessa casa e assim ficaria- abre essa porta, Vic, vamos conversar.

-Por favor, me deixa sozinha- digo para ela

-Você não pode se esconder de todo mundo para sempre, não é assim que funciona- então eu abro a porta, ela me abraça. Desde quando não fazíamos isso? Eu me pergunto. Nós vivíamos com medo e parece que não tínhamos nem para nos abraçar mais. Nós nos afastamos, eu me afastei e agora nem aquilo fazia sentido. Mas continuo ali, abraçada com ela. É o melhor e o pior momento que já vivi. Ela pega minha mao e me leva até o sofá.

-Sabe, eu tentei, tentei fazer ele parar de beber, mas não consegui, parece que ele sentia que tinha algo faltando dentro dele, não sei. Eu fiz de tudo, antes disso ele era uma boa pessoa, quer dizer, nem sei mais. Parece que ele não liga pra mais nada. Ele é outra pessoa, ou talvez, ele sempre foi assim e eu que soube enxergar. Ele precisava de ajuda e eu sabia disso, mas toda vez que falava com ele sobre, ele me jogava contra a parede. E eu não sabia como lidar, então ficava calada- minha mãe estava mais machucada do que eu podia imaginar. Ouvir ela dizer tudo isso era como uma faca para mim. E pensar, que eu culpava ela por todas as atitudes que nos afastavam, ela estava com medo, assim como eu e agora, eu me sentia mais culpada ainda. Culpada, por imaginar que tudo aquilo era culpa dela também. Ela estava sofrendo e aguentando tudo sozinha, eu não podia acreditar- agora, eu tudo o que eu desejava realmente era que ele não voltasse. Será que eu sou tão ruim por desejar isso? Eu só queria...só queria que tudo isso parasse.

-Eu também- ficamos sentadas na sala por horas. Quando vemos, já está de manhã. Tudo que faço é continuar sentada. Fico em casa e, pela primeira vez em muito tempo, eu e minha mãe compartilhamos um dia juntas. Ela le para mim o nosso livro e pela primeira vez na vida, de novo, eu me sinto livre. Como se algo voltasse aos trilhos, algo que eu não sei exatamente o que é, mas me deixa aliviada.

Passam-se semanas, mas nada dele dar algum sinal.

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-Então,Vic- Fernanda começou sua fala- como você está se sentindo a respeito disso tudo? A respeito da morte de seu pai.

-Bom, no começo, eu estava desesperada, Para mim não fazia nenhum sentido estar acontecendo tudo isso. Depois veio a sensação de medo, medo dele voltar pior do que era e querer atacar a mim e minha mãe, colocar a culpa, inconscientemente, na gente de tudo o que aconteceu com ele. Depois eu só consegui sentir um misto de pena e raiva, pena por ele estar naquele estado e raiva por tudo que ele fez pra nós. Agora eu não sei o que sentir.

-Está tudo bem se sentir assim as vezes, faz parte da vida. O importante é encontrar o jeito certo de agir quando você sente algo, por isso as sessões são necessárias.

-Quando eu vou começar a entender meus sentimentos?

-Querida, não se entende sentimentos, a gente sente. Por isso é importante viver. Só estar vivo não basta- saio da sala pensando nisso. Só estar vivo não basta.Será que eu estava realmente vivendo? Ou só estava viva? Não importa, agora eu iria mudar minha forma de viver. Eu quero viver e não somente estar viva- e, para isso, queria te dar um presente- ela tira da bolsa um embrulho listrado e entrega em minha mao. Era um caderno- quero que você escreva sobre a sua vida, todos os seus dilemas, tristezas, angustias e soluções. Você vai ver como vai ser bom.- tudo que faço é agradecer e sair.

Quando saio da sala, encontro Lucas me esperando para ir embora. Pergunto ele sobre sua mãe.

-Ela está bem, está se recuperando, quando puder, te levo lá para visitar ela.

Saímos pela rua correndo, pulando e cantando como se nada mais importasse. Então, chegamos no parque e ficamos lá por um longo tempo.

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Debora B Ribeiro
Enviado por Debora B Ribeiro em 02/11/2021
Código do texto: T7377011
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