Café da manhã em família

-Já são oito horas, meu amor. O café está na mesa. Fiz o seu omelete do jeito que você pediu. As crianças estão te esperando.

As batidas dadas na porta por sua esposa fizeram o homem abrir os olhos e sentir uma certa satisfação por ser o pilar de uma família tradicional. O despertador de Narciso já soara três vezes em um intervalo de quinze minutos, mas, pelo fato de ter chegado em casa além do horário habitual, depois de ter tomado algumas cervejas com os seus colegas de serviço após o futebol sagrado de todas as quartas-feiras, achou que poderia ficar até um pouco mais tarde na cama, afinal, embora não tivesse feito nenhum gol na noite anterior, tinha corrido mais e reclamado menos do que de costume.

As crianças já estavam sentadas em seus respectivos lugares, cada uma delas com um celular nas mãos, enquanto a mãe terminava de arrumar a pequena bagunça sobre a pía. O pai sentara-se à mesa.

-Bom dia, meu querido. Como foi ontem à noite com os seus amigos, divertiram-se bastante?

-A noite foi ótima. Perdemos o jogo mas a conversa pós jogo foi agradável.

-E conversaram sobre o que ?

-Sobre coisas que os homens costumam conversar, querida, política, negócios, futebol.

-Achei que os homens conversavam sobre mais coisas também.

-As vezes não sobra tempo, já que estes assuntos rendem bastante.

Após uns cinco segundos de silêncio, como para quebrar a quietude que ficara no ar, Narciso olhou para o casal de crianças e disse:

- Como foi a aula ontem, meninos, conseguiram fazer o dever de casa do qual estavam com dificuldades?

-Eu consegui fazer só a metade das contas de matemática, já que a mamãe não soube me explicar o restante dos exercícios, respondeu o menino.

- É de se imaginar, visto que as mulheres não são muito boas de contas. Tem que dar um desconto para a mamãe. Depois do café, se sobrar algum tempo, vejo isso pra ti.

A mãe pensou em falar algo que desmentisse essa observação, mas, por experiência familiar, sabia que seu marido tinha pequenos ataques de fúria quando descordavam de sua opinião, ainda mais pela manhã.

- E você, minha princesinha, conseguiu fazer o seu dever de casa?

- Sim, papai. Isso quer dizer que o senhor agora pode cumprir o que me prometeu: me dar o dinheiro para eu comprar aquela boneca que fala e faz xixi.

- Eu te prometi isso?

-Sim, papai. No final de semana passado o senhor disse que se eu me comportasse e fosse bem na escola, eu iria ganhar a boneca.

- Sei. E quanto custa essa boneca?

- 229 reais, disse a mãe.

- Um tanto caro essa boneca, né, minha filha. Quem sabe no dia das crianças.

Outro silêncio tomou conta do recinto. A mãe não disse nada, mas achou impressionante que para encher a cara de cerveja depois do jogo com os amigos, Narciso sempre tinha dinheiro sobrando.

- Além do mais, filha, o papai quer trocar de carro no final do ano. Embora o carro do papai tenha apenas dois anos, acredito que seja necessário termos um carro mais novo e mais potente.

Narciso já se imaginava chegando em casa de carro novo após o expediente de serviço, entrando com o carro no pátio sob os olhares dos vizinhos. Essa visão que lhe veio a mente, deu-lhe uma revigorada no espírito, fazendo com que desse mais fome no provedor da família.

- Amor, poderia fazer mais dois omeletes para mim, por favor, hoje estou com uma fome além da conta.

- Mas você nem terminou o primeiro ainda.

-Eu peço e você faz. Combinado?!

Camila estava começando a ficar de saco cheio das atitudes do marido; não conseguia mais admitir que Narciso fosse tão grosso com ela, ainda mais na mesa na frente dos filhos.

- Uma moça ligou ontem aqui para casa perguntando por você, já é a terceira vez na semana que ela liga.

Camila tomou coragem e, como que esquecendo que as crianças estavam ali, perguntou:

- Você quer me dizer alguma coisa, Narciso?

- Mas que merda, mesmo!

O homem bateu o pulso cerrado com toda força na mesa, fazendo com que alguns copos virassem e derrubassem um pouco de suco da jarra. As crianças petrificaram-se.

- Já não basta eu ter que ouvir um monte de bobagem do desgraçado do meu chefe, só porque o canalha, sendo o dono da empresa, filhinho de papai dos diabos, adora mandar nos outros de cima do púlpito da arrogância, já não bastasse isso, tenho que ouvir desaforos de ti, insinuações sem o mínimo de razão. Eu não aguento mais! Vou voltar para a minha cama para não ter que escutar tamanha asneira.

Narciso levantou-se da mesa de um solavanco e subiu as escadas que davam para o seu quarto. Adentrando no aposento, deitou-se na cama e colocou o celular para despertar, já que sairía para o serviço só depois das onze. Por um motivo qualquer, quando pegou o celular na mão, veio-lhe a pergunta de porquê razão todas as pessoas de hoje em dia tinham a sua própria foto na tela de proteção dos seus celulares; com ele não era diferente; mas esta sua indagação psico-sociológica, da mesma forma que surgiu em sua mente, dissipou-se como fumaça em meio ao vento. No mesmo instante em que a tela do celular apagou, Narciso mergulhou sua mente rasa em um sono profundo, prestes a se afogar nas imagens que surgiriam do seu inconsciente durante o sono. Mal sabia que cometera os sete pecados capitais em apenas uma manhã.

Igor Grillo
Enviado por Igor Grillo em 03/11/2021
Reeditado em 24/12/2021
Código do texto: T7377772
Classificação de conteúdo: seguro