Telejornal matinal
Já fazia alguns anos que a rotina matinal de seu Iludílio tinha ares de um ritual sagrado. Levantava-se todos os dias às seis e meia da manhã e, enquanto deixava a chaleira com a água no fogão para o café, ia ao banheiro escovar os dentes já bastante amarelados de nicotina. O cigarro e o café eram os leais companheiros nestes primeiros momentos do dia para o aposentado já de certa idade. O tempo que necessitava para cumprir essa diligência costumeira era de pouco mais de vinte minutos; tempo suficiente para, após o momento de reflexão sentado na soleira da porta, dirigir-se à poltrona que ficava no meio da sala e assim completar a santa tríade com o elemento que faltava para começar o dia: a televisão. Seu Iludílio achava essencial acordar bem informado, por isso, quando ligava a tv, o telejornal local era o programa de todas as manhãs.
- Muito bom dia, queridos telespectadores. Que a nossa sexta-feira seja abençoada por Deus. Nós aqui e vocês aí, juntos bem informados com as notícias de nossa cidade.
Virando de leve o corpo sobre a cadeira giratória em que estava sentado atrás da bancada, o apresentador trocou o foco do seu olhar para a câmera 2, usando a técnica recorrente na apresentação dos noticiários, logo prosseguindo com a fala.
- Família composta por cinco integrantes que voltavam de carro de um passeio no interior do estado é fatalmente atingida por um caminhão carregado de arroz que descia a serra. Os cinco membros da família morreram no local, entre eles, duas crianças de quatro e sete anos. O motorista do caminhão sofreu apenas leves escoriações. Nosso repórter está no local do acidente e nos traz mais informações sobre a tragédia.
Após os detalhes dados pelo repórter, a imagem na televisão voltou para o apresentador, que após tecer um breve comentário sobre o ocorrido, seguiu para a próxima notícia, fazendo com que seu Iludílio não tivesse tempo suficiente para digerir a triste notícia; era como um bombardeio.
- Após uma discussão, homem mata a esposa com vinte e duas facadas. O motivo do crime passional seria o ciúme da parte do marido.
A reportagem já gravada no dia anterior mostrava a entrevista da mãe aos prantos e de alguns parentes da vítima, todos com o semblante que é de se imaginar nessas situações. Seu Iludílio assistia às notícias com uma serenidade estóica e, embora tenha trabalhado a vida toda como pedreiro na construção civil, absorvia as notícias tal qual a um veterano de guerra que já vira de tudo no campo de batalha, fazendo vez por outra um comentário jogado ao vento, já que a sua digníssima esposa costumava se levantar costumeiramente após as oito horas. A matéria terminou e a palavra voltou ao âncora do programa.
- Agora eu peço um minutinho a você aí de casa para o recado de um de nossos contribuidores.
A câmera 3 focou na exuberante mulher que faria a propaganda de um produto para esterilidade masculina; é bem provável que essa parte do programa fosse uma das que mais mexessem com o ânimo do velho. A bonita mulher decotada usava expressões como dar no coro, afogar o ganso, entre outros eufemismos para convencer homens como o seu Iludílio a adquirir o produto por ela anunciado.
- Já, já, voltaremos após os comerciais, disse o homem engravatado de um dos lados da tela.
Os produtos anunciados no intervalo do programa eram os que, supostamente, mais necessitavam à audiência: anúncios de comida industrializada, bebidas alcoólicas e a venda de carros populares por cinquenta mil reais.
Passados quase todos os sessenta minutos do programa, com conteúdo suficiente para uma pessoa com um maior grau de realidade do que seu Iludílio perguntar-se qual dos três elementos da tríade era o mais tóxico, a programação foi interrompida pelo plantão editorial de jornalismo da emissora, informando que a instantes atrás havia caído o avião no qual se encontrava o cantor sertanejo de maior sucesso do momento no país, levando a celebridade a óbito. O luto estava instaurado na população brasileira.