De quando se parte (Capítulo II)
Despedi-me de meu pai naquela tarde sem um adeus. Ele não gostava. Seu Abzala era um homem cheio de mistérios. E quando desci o vão de escadas e estava na rua, olhei para cima e lá estava ele na janela, da mesma maneira, estático, concentrado no distante. Não reparara em mim uma única vez. Desengonçado, ajeitei o boné e toquei o meu destino. Fazer o quê? Um pouco mais adiante, não resisti e fitei aquele quadro mais uma vez: qual não foi o espanto, lá estava o meu velho a me olhar. Ele estava sem expressão, com o cigarro ainda acesso na boca e uma fumaça que se espalhava pelo rosto. De repente, vi que consultou o relógio e fechou a janela, de solavanco. Nunca mais o vi com vida.
Cresci assim, com os sentimentos reprimidos e durante muitos anos culpando a mim mesmo por ter nascido. Vez por outra eu pegava minha mãe chorando pelos cantos, tentava consolá-la, mas ela me repelia. Eu não precisava saber da vida, das coisas duras e difíceis de entender. Emburrado, eu buscava consolo nas feridas vivas que eu fazia em meu próprio corpo. Era uma besteira, eu sei, mas ajudava a amenizar a dor da alma – uma dor deveras estranha, dessas que vêm assim, sem sentido e não vão embora, porque o “sem sentido” permanece na espinha. Por muito tempo eu me odiei, e por isso via na autoflagelação uma estúpida vitória. Que besteira, Deus. Que tolice.
Uma buzina estancou meus pensamentos:
– Está viajando, seu animal? – foi o que ouvi, mas não liguei para o insulto. Levantei-me do chão, limpei as mãos e segui meu destino. Não valia a pena discutir.
Não tinha mais certeza das imagens que vinham à mente. Era tudo tão incerto. Anestesiado de tudo e de todos eu agora observava cada pedrinha que encontrava pelo caminho. Uma delas me trouxe a memória antiga de meu pai: estávamos na praia e ele sorria ao lado de dois colegas. Sozinho, eu fazia castelinhos na areia, a alguns passos da barraca. Na minha inocência queria chamar a atenção de seu Abzala com um castelo imenso e cheio de torres. Então cavava, cavava... Buscava fundo a fina e mágica areia molhada do mar. Era um trabalho gotejador, exigia paciência. As torres às vezes se desmanchavam e eu corava de vergonha, humilhado da péssima engenharia. Por alguma razão eu achava que eles estavam a me observar, era uma simples e estúpida expectativa infantil.
O sol ia forte e eu não o sentia. Adorava o mar. A brisa marinha. O cheiro do sal. De repente olhei para a barraca onde estava papai e não mais o vi. Mamãe continuava a mesa. Tinha um pano cobrindo o rosto. Óculos escuros. Chapéu de palha e uma flanela colorida na cabeça. Acenei, chamando-a, mas ela não respondeu. Absorta, amargava solitária um vislumbre qualquer; era isso. Levantei-me e gritei com todas as forças e veias do pescoço, a favor do vento. Ela então acordou da hipnose, acenou com a mão e disse algo que não entendi.
Virei-me para o mar e agora eu tinha uma garotinha ruiva ao meu lado, sentada, a mexer no meu castelo:
– Oi? – foi o que eu disse. Sem fitá-la no rosto. Eu não tinha jeito para as meninas, ainda quando bonitas.
– Oi, neném – ela me respondeu, com uma voz suave e tão doce que fiquei anestesiado. Ela sorriu:
– E então, para quem é o castelo?
Esbocei uma resposta qualquer e terminei romântico:
– Para uma princesa que ainda não conheço.
– Ah é?, hum... Essa princesa deve ser especial, porque o castelo é lindo.
– É sim, mas não chega aos pés dela; não sabe?
A menina sorriu, tímida. Tinha uma boca pequena e discreta. E começou a gotejar com as mãos o castelo, como se me ajudasse no trabalho... Ela então tirou uma mecha dos olhos e me olhou com profundidade:
– Conta pra mim, como ela é, Abzala?
O espanto foi instantâneo: Abzala? Mas como ela sabia o meu nome?
Foi quando senti as mãos de minha mãe na cabeça, virei-me para ela, sem jeito.
– Com quem meu menininho está falando, hein?
Envergonhado, virei-me novamente para a menina quando percebi que ainda não tinha perguntado o nome. Mas ela havia sumido.
– Hein, Abzala? – insistiu mamãe.
– Não viu a garota que estava aqui?
– Que garota? – disse com espanto e ternura.
Busquei pegadas no chão, marcas, mas não existiam, queria provar... Então mudei o foco:
– Onde está papai?
– Seu pai... Bem, seu pai teve que sair pra resolver umas coisas.
– Que coisas?
– Coisas de adulto, Abzala. De adulto. Vamos, levante. Vamos mergulhar.