ATÉ QUE A MORTE OS SEPARE, DECRETOU O PADRE

A tarde morria lentamente, serena e triste. E o carro fluía em velocidade irregular, ora muito baixa, ora muito alta, pelas curvas sinuosas, ladeira abaixo, da perigosa rodovia. A luz solar dispersava-se na atmosfera, projetando sobre o asfalto sombras fantasmagóricas, mas Renato não percebia, nem Emília, acomodada no banco do carona, ensimesmada, olhar distante, perdido, completamente alheia ao que a rodeava. Imersos em devaneios, não se percebiam, não percebiam nada. Seus pensamentos voavam para longe, perdiam-se no passado, reviravam o presente, projetavam-se no futuro, incertos, tumultuados.

+++++++++++++++++++++

Estavam casados há vinte anos. Nos primeiros tempos, enquanto o acalento da paixão os embalava, tudo era lindo e mágico. No entanto o encantamento foi esmaecendo, até que um dia, quando se deram conta, já não conseguiam definir o que um sentia pelo outro. Durante mais uns poucos anos, administraram a relação assim, valendo-se da parca camaradagem que sobrara. E fingiam, numa tentativa de deixar transparecer que tudo ia bem, o que piorou a situação. O distanciamento emocional decorrente crescia entre ambos, dolorido, inexorável.

Quando a magia dos primeiros anos era tudo do que necessitavam, não pensaram em filhos. Era fundamental que vivessem abundantemente esses tempos, sem nada mais para além deles. Depois, em função do trabalho, também foram adiando o projeto de aumentar a família, até que não falaram mais a respeito. E foram ficando sós, sem afinidades, sem alegria de estarem juntos, encapsulados numa relação formal e fria, não obstante polida.

Financeiramente, não tinham do que reclamar. Ele, engenheiro civil, gozava de um posto relevante numa grande empresa; ela, professora universitária efetiva. No final do dia, sempre chegavam em casa cansados e indispostos. Como a empregada doméstica já houvesse saído, preparavam juntos o café, durante o qual trocavam algumas gentilezas, um perguntava ao outro como fora seu dia. Só. Depois do banho, Renato ligava o televisor, para assistir ao noticiário, enquanto Emília se envolvia com alguns compromissos de seu trabalho, depois tomava um comprimido para dormir e ia para a cama.

E assim os dias foram se sucedendo, alguns anos passaram, até que não aguentaram mais. Pararam para repensar a relação e chegaram à conclusão de que erraram tudo desde o início, movidos pela paixão e pela imaturidade, todavia poderiam recomeçar, voltar a se apaixonar. Havia muito tempo pela frente, suficiente para que se dedicassem à construção de uma vida aprazível e feliz.

Para marcar o início do recomeço, resolveram que fariam uma nova lua de mel. Era janeiro, tempo de férias para ambos. Preparam tudo de que necessitariam e numa manhã quente de sábado partiram rumo a um belíssimo e pitoresco hotel fazenda, no alto da serra, onde já haviam estado durante os fulgores da paixão.

A viagem transcorreu dentro de uma normalidade morna, sem novidades, permeada por poucas conversas, embora a paisagem deslumbrante propiciasse oportunidades para que estivessem alegres, reativando agradáveis lembranças. A subida serpenteante da famosa serra pouco chamou atenção do casal. Contudo estavam tentando, pensara Emília, ligeiramente ansiosa. A viagem era só o primeiro passo, que tivesse paciência; estavam apenas no primeiro dia dos 15 planejados.

Chegaram ao hotel já na metade da tarde. Renato parecia um tanto amuado, mas Emília nem percebia. De repente ficara animada e tagarela:

- Amor – fazia tempo que aquele vocativo deixara de fazer parte do vocabulário de ambos, mas Emília estava decidida e esforçara-se, embora a palavra tivesse saído meio que empurrada e soara falso, lhe parecera – lembra de quando estivemos aqui pela primeira vez?

- Lembro, falavas sem parar, como agora.

- Não te importes, é que as lembranças começaram a aparecer tão vivas, tão cheias de vida, que eu voltei àqueles tempos. Sou, neste momento, aquela garota imatura e feliz. Ficas chateado?

- Não, claro que não. Vamos relembrar, reviver, repensar e recomeçar, como planejamos, está bem? Só estou meio cansado. Nada mais que isso.

- Ah, que bom, querido! Que tal andarmos a cavalo? Foi como começamos a outra vez, lembras?

As palavras “amor e querido” reverberavam de forma estranha na mente de Emília e a incomodavam.

- Está bem – respondeu Renato - vamos lá, como na primeira vez.

Emília estava acreditando que o segredo seria repetir os procedimentos da primeira vez, pela ordem. E se dirigiram às cocheiras, onde lhes entregaram dois belos animais marchadores. Eles montaram e saíram em busca da felicidade perdida. Galoparam pelos campos, descansaram às sombras de frondosas árvores, falaram amenidades e elogiaram a exuberância da natureza a sua volta. Voltaram exaustos, quando os últimos raios de sol começavam a tingir o céu de vermelho lá no horizonte.

Naquela noite nada de memorável aconteceu. Ainda não havia clima para nada mais íntimo. Pelo menos não nesse primeiro momento do que convencionaram chamar de recomeço. Há quanto tempo viviam aquele estranhamento, como se não estivessem casados? Habitavam o mesmo teto como se fossem apenas amigos. Acostumaram-se a viver assim, dividindo a mesma cama, sem se tocarem. Cada um - ela não lembra quando nem de que forma - começou a caminhar por caminhos diferentes, envolvidos por interesses diferentes. Será que conseguiriam romper essas amarras? Estavam ali para isso, no entanto o primeiro dia terminara e absolutamente nada acontecera que indicasse que estavam no rumo certo.

Renato dormira quase em seguida e Emília estava ali pensando, pensado, ansiosa e o sono não aparecia.

Dia seguinte, Emília acordou cedo, não dormira quase nada. Chamou Renato, que resmungou, virou-se para o outro lado e voltou a roncar. Ela deixou a cama, trocou de roupa e decidiu fazer uma caminhada pelos arredores. Andou até cansar; então, sentou-se à beira de um lindo riacho de águas cristalinas e passou a contemplar os peixinhos. Libélulas, borboletas e passarinhos faziam parte do belo cenário, que transportava Emília para um mundo de tantas lembranças, algumas lindas, outras nem tanto. Assim enlevada, nem percebeu a chegada do marido, que a procurava.

- Meu Deus, Emília, que susto me deste! Faz mais de uma hora que estou à tua procura, preocupado, até pedi ajuda a alguns funcionários do hotel para me auxiliarem na busca.

- Desculpa-me. Saí para caminhar e acabei perdendo a noção do tempo, envolvida por esta natureza linda. Olha, não é um espetáculo, um presente divino? Fica tranquilo, está tudo bem.

– Não está tudo bem. Foi uma inconsequência da tua parte e eu fiquei nervoso. Mil pressentimentos ruins invadiram minha cabeça. Vamos voltar para o hotel e tomar café, que estou morrendo de fome.

Renato foi indelicado com a esposa e na continuação daquele dia não falou direito com ela. Depois do café, pegou um cavalo, saiu sozinho e só reapareceu ao meio dia, calado.

Emília, embora triste, tentou consertar a situação, mas Renato estava distante e não lhe dirigiu mais que lacônicas palavras formais.

Depois do almoço, Renato foi para o quarto e dormiu até às 15h. Emília aproveitou para andar um pouco mais pelas imediações e pensar sobre a situação. Quando caminhava de volta para o hotel, deparou com Renato, que a procurava.

- Estou aqui - disse ela.

- Ah, que bom! Estava pensando que poderíamos andar a cavalo. Pode ser?

- Pode, sim, eu gosto de andar a cavalo; depois, que tal um banho de piscina e mais tarde dançar?

Ela teimava em manter qualquer fio de esperança que por ventura surgisse.

- Combinado – respondeu Renato sem demonstrar muito entusiasmo.

Aquela tarde terminou assim, conforme combinaram, todavia permeada pelo tom mecânico de sempre.

E os dias no hotel foram passando, inalteráveis: caminhavam, cavalgavam, tomavam banho de piscina, dançavam, falavam amenidades, mas nada de significativo, que vislumbrasse a mudança que pleitearam acontecia. Eram pessoas acostumadas uma com a outra, amigas, só.

No décimo dia de permanência no local, já entediado pela rotina, Renato sugeriu, logo pós o almoço, encerrarem a estada:

- Em casa, decidiremos com calma sobre o que fazer, para mudar o rumo de nossa história.

Emília concordou prontamente.

Deixaram o hotel às 15h, de forma que anoiteceriam ainda antes de terminarem a descida da serra e Renato não gostava de dirigir à noite. Mas agora precisavam ir.

+++++++++++++++

A noite chegou . Na rodovia deserta, nenhum ruído, além de seus próprios pensamentos. A ausência de tráfego era total. E o carro disparava ladeira abaixo, produzindo em seus sentidos a sensação de que caiam num vácuo.

Emília pensava:

“Esta talvez seja nossa última viagem juntos. De acordo com minha formação religiosa, na qual tenho me mantido acorrentada por todos esses anos, casamento é um pacto abençoado por Deus, que só poderá ser rompido pela morte. Até que a morte os separe, disse o padre e eu não duvidei. Sempre foi assim na minha família. Por outro lado, de uns tempos para cá, tenho pensado a respeito e cheguei à conclusão de que, se desejo ser feliz, preciso romper as amarras. Amanhã mesmo, antes de qualquer outra coisa, conversarei seriamente com Renato a respeito. Pedirei o divórcio. É a alternativa que nos resta, para que tenhamos chance de construir uma nova história, agora a partir de uma perspectiva diferente, racional, madura. Renato, com certeza, aceitará a decisão sem maiores questionamentos. Ele não me ama. Para ser sincera, também não o amo. Nunca nos amamos, de verdade, apenas nos acostumamos um ao outro. Presos na rotina que construímos, aprendemos a conviver amistosamente, mas separados por mundos particulares muito diferentes, em que cada um vive seus próprios significados. Apesar de tudo, chegamos a acreditar, ingenuamente, eu creio, que poderíamos reverter a situação e recomeçarmos. Tentamos, mas não deu. ”

Renato passava em revista sua vida junto de Emília desde os tempos de namoro e não conseguia encontrar o momento em que cometeram o grande erro. Na verdade, não houve um momento específico. Foi um processo. E tanto se afastaram, que agora já não conseguiam se reencontrar. A alternativa, para que tivessem condições de construir uma nova vida seria o divórcio. Juntos não daria mais.

Ele atribuía a Emília a maior parte da culpa por estarem, há anos, arrastando um casamento vegetativo. Algumas vezes tentara falar sobre separação, mas ela sempre rejeitava categoricamente qualquer pensamento que significasse romper os votos sagrados. Para ele, a igreja os condenara, em vez de abençoá-los.

Assim, perdido nesses pensamentos, Renato não percebia a alta velocidade do carro, as curvas perigosas, o pé que pisava forte no acelerador e não viu a grande pedra que se desprendera do barranco e bloqueava a pista pela qual trafegavam. Com o impacto da violenta batida, o veículo rodopiou no asfalto e projetou-se no precipício. A língua de fogo que se ergueu do fundo do despenhadeiro e ninguém testemunhou, foi o sinal de que o decreto do padre que estava sacramentado.

MCSobrinho
Enviado por MCSobrinho em 18/11/2021
Reeditado em 23/11/2021
Código do texto: T7388575
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2021. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.