Livros

Os cerca de seis ou sete livros já estavam empilhados sobre a mesa da cozinha. Na noite anterior, Cristian havia-os separado entre as obras da sua pequeníssima biblioteca; pequeníssima mesmo, em torno de vinte e cinco ou trinta livros. Estes não mais fariam parte de sua modesta coleção que ficava na estante da sala ao lado de dois retratos dos integrantes da família. O relacionamento com a sua esposa, mãe de sua filha, não estava sendo da maneira que sonhara a uns quatro anos atrás, quando foram os três morar juntos depois de uma gravidez relâmpago; relâmpago pelo fato de a menina ter nascido em menos de um ano após o casal ter começado o romance; eram apenas dois jovens, dois jovens amigos que se conheciam desde pequenos e que supunham ter uma vida feliz juntos. Mas os livros empoeirados que jaziam um sobre o outro mostravam-lhe que essa hipótese de felicidade conjugal não estava de acordo com a atual realidade matrimonial. Muitas brigas estavam acontecendo sucessivamente entre eles; brigas por motivos banais, mas que, em razão de suas idades, eram consideradas questões de vida ou morte. Apenas Cristian estava trabalhando, e isso era uma dificuldade a mais, uma vez que estavam morando de aluguel. No seu modo de ver, então, nada mais sensato do que vender alguns de seus exemplares para alguma livraria ou sebo, tendo assim um adicional para quitar os vencimentos referentes aos gastos da vida a dois, no caso deles, a três.

- Jennifer! Jennifer! Acorda! Viu, estou indo naquela livraria perto da Redenção para vender os livros.

- Tudo bem.

- Vou direto para o serviço depois.

- Ok.

Os diálogos entre eles estavam cada vez mais monossilábicos. Cristian colocou os livros dentro da mochila e saiu para o sacrifício.

- Bom dia, seu Geraldo

- Bom dia, rapaz.

O velho que alugava a casa para o casal era tio de Jennifer e morava na residência ao lado, no mesmo pátio; chamava Cristian sempre por "rapaz", já que a sua memória não era a mesma de antigamente, muito por causa de sua idade avançada, além de um AVC a alguns anos atrás.

- Indo mais cedo para o trabalho?

- Sim, ossos do ofício, o senhor sabe como é.

Claro, seu Geraldo sabia sim como era, e sabia tanto da vida em si, em razão de já ter vivido bastante, como sabia também de muito da vida do casal, já que as discussões entre os jovens amantes eram cada vez mais frequentes e acaloradas, o que fazia com que não só seu geraldo as escutassem, como também quase a rua inteira.

Cristian desceu o beco que dava acesso à rua por onde passava o ônibus que o conduziria até a livraria. Sua cabeça era um turbilhão só. Além dos pensamentos constantes que permeavam sua mente em relação ao casamento, pensava em quanto poderia conseguir com a venda daqueles livros que tanto lhe serviram de conforto em momentos de crise espiritual. A literatura tem esse poder. Para Cristian, a escrita fora a maior invenção da humanidade, mais do que a roda, o vidro, o barco, o avião ou até a internet; uma obra literária como Os Irmãos Karamázov, era tida por Cristian do mesmo patamar ou até superior do que qualquer invenção de Da Vinci, de um Moisés de Michelangelo ou de qualquer obra arquitetônica. Era com muito pesar que Cristian estava se desfazendo de alguns desses bálsamos que lhe foram um dia; parecia que estava abdicando de pequenas partes de uma forte armadura, ficando assim vulnerável às investidas do inimigo, neste caso, o maior de todos, a vida e as suas armas mortíferas.

- Muito bom dia!

- Bom dia, garoto. O que seria para você?

- Eu sou quem ligou ontem à tarde aqui para a livraria. Acho que foi com o senhor que falei.

-Ah, sim, sobre a venda de alguns livros. Vamos ver o que tens aí.

Cristian abriu a mochila e tirou os livros de uma só vez com a mão direita. Eram todos livros pequenos em formato pocket.

- Vejo que tem alguns clássicos aqui.

Faziam parte da pilha de livros que agora encontravam-se no balcão em frente ao livreiro obras como On The Road, de Jack Kerouac, um livro com alguns contos de Tolstói, um álbum de fotos de Oscar Wilde, acompanhado de sua triste e genial história, e mais outros de temática parecida, romances, contos e novelas que nunca sairiam de moda, pelo menos enquanto existissem pessoas como Cristian: buscadores incessantes de respostas sobre a existência através de uma ajuda dos homens e mulheres mais proeminentes que já haviam passado por essa vida e que haviam deixado um relato dessa experiência através de obras literárias que tinham o poder de quebrar o gelo de qualquer superfície ou vida congelada.

-Enquanto o senhor avalia os livros, eu vou dar uma olhadinha nos que o senhor tem aqui.

- Fique à vontade, disse o homem atrás do balcão.

Cristian passava os olhos fileira por fileira, cada vez mais admirado com os títulos; os pensamentos sobre suas brigas com Jennifer cessavam completamente quando deparado com qualquer coisa referente a livros. O livreiro se aproximou de Cristian para arrumar alguns livros na estante e aproveitou para perguntar ao jovem:

- Procuras algo em especial?

- Por acaso o senhor tem O Castelo, de Kafka?

- Tenho sim, mas eu o aconselharia a levar algum de Tchekhóv, este último não é tão difícil de ler. A leitura de Kafka é muita densa e tensa. Para um jovem como você, eu recomendaria o escritor russo.

- Se existe uma vida densa e tensa, o senhor pode ter certeza que é a minha.

O comentário do homem mais velho antes da resposta de Cristian fê-lo lembrar da observação do rude professor de Schulpforta ao jovem estudante Nietzsche sobre os estudos do filósofo alemão nos tempos de colegial, quando este fizera uma tese sobre as obras de Holderlin, "atenha-se a poetas mais saudáveis, mais lúcidos e mais alemães". Cristian nem olhou para o homem e respondeu:

- Bacana, mas eu vou levar O Castelo mesmo assim.

Cristian imaginou que a leitura dessa obra seria uma boa, afinal, o seu castelo conjugal estava desmoronando, e quem sabe no escritor tcheco conseguiria achar forças para não ruir de vez o relacionamento.

- Jóia. Seus livros foram avaliados em trinta reais. Vais querer o dinheiro ou quer abater no preço da compra do Castelo?

- Pode abater. Vou levá-lo.

O livro custava vinte e cinco reais. Cristian pegou a nota de cinco que tinha sobrado de troco e saiu em direção ao serviço. O aluguel que esperasse.

Igor Grillo
Enviado por Igor Grillo em 19/11/2021
Reeditado em 02/01/2022
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