EXAME DE VISTA

O pequeno balão entrou e saiu de foco algumas vezes, até se fixar. A máquina cuspiu um papelzinho, e a enfermeira me encaminhou para a sala de espera. Estava impaciente, tinha mais o que fazer. Coisas sérias de verdade, não aquela baboseira que a mulher vivia insistindo pra eu resolver. “Vai no médico ver isso, Carlos! Tá só piorando, nem o letreiro do ônibus cê tá enxergando direito!” Essas coisas de mulher, sabe? Meu pai nunca tinha precisado ir ao médico na vida, um exemplo de saúde. Morreu muito bem, de velhice aos 70, como tem que ser, sem nunca ter botado os pés num consultório. Um dia simplesmente dormiu e não acordou mais. Findou-se a vida, missão cumprida. Pra que querer mais?

Mas aqui estou, nessa sala de espera gelada, esperando ser chamado.

- O que o traz aqui, senhor?

- Minha mulher.

- Como?

- É, coisa da minha mulher. Ela diz que tô ficando cego.

- E está?

- Não, só um embaçado. Mas a vida é assim, o olho gasta, o joelho gasta, tudo gasta, não é mesmo?

- É, pode ser vista cansada sim. Sente aqui, por favor. - disse o médico, muito jovem.

Ele tinha aquele jeito que os homens de hoje tem, de parecer mulher. Não afeminado, não é isso. Mas essa coisa de ser educado, de falar baixo e ser estudado. Mandou eu ler umas letrinhas lá longe, como que eu ia ler aquilo? Aí ele veio com uma geringonça e colocou na minha cara, parecia uma máquina com vários óculos dentro. Foi trocando os óculos e perguntando se eu conseguia ler, até que acertou um lá.

É, parece que tem grau sim. Vamos ver se tem mais alguma coisa - disse o moleque, que nem barba tinha ainda.

Pingou um colírio ardido nos meus olhos e olhou lá dentro com uma luz forte. Disse que tava tudo bem, e me deu uma receita de óculos.

- Só mais uma coisa, o senhor está acompanhado?

- Não, senhor.

- É que, devido ao colírio, pode ser que o senhor não consiga sair daqui sozinho, seria melhor chamar alguém.

- Agradecido, mas não carece não. Eu sei me virar.

Impressionante como esses homens de hoje em dia são fracos mesmo, onde já se viu um homem precisar de ajuda pra ir pra casa? Mas saí da clínica, e que diacho de sol forte! Não dava nem pra abrir o olho direito, e lá estava eu no meio da praça sem saber pra onde ir. Coloquei as mãos nos olhos, estava realmente ficando cego? Aquele mulherzinha estragou minha vista? Eu ia matar aquele filho da mãe! Se ao menos eu soubesse pra que lado ficava a clínica…

Resolvi sentar em um banco próximo e esperar aquela cegueira passar. O mundo todo parecia tomado de sol. Com o tempo a vista foi acostumando um pouco, e consegui enxergar por entre os dedos.

Havia um pombo preto e branco perto dos meus pés, comendo um resto de pipoca que alguma criança ali deixou. O pombo brilhava. O preto do pombo brilhava, o branco do pombo brilhava, tudo com um tom de azul. Fiquei ali uns minutos tentando olhar o pombo azul, nunca tinha visto pombo azul por ali. É outros pombos foram chegando, e todos eram azuis. Não “azul azul”, mas como se tivesse uma luz azul saindo deles.

Achei que estava ficando doido, será que alguém veio e me deu uma bala com droga, que nem a gente escuta que fazem com as crianças na porta da escola? Resolvi forçar a vista mais um pouco, a luz ainda incomodava muito, mas incomodava mais ainda aquele azul que parecia refletir em tudo. Olhei minhas mãos e elas também estavam com aquela luz azul. Será que viria do céu aquela luz? Eu não conseguia olhar o céu, a claridade ainda era muito grande, mas comecei a desconfiar que o céu estava mais azul.

Agora já conseguia olhar as coisas ao redor e andar, e resolvi que queria olhar a praça um pouco melhor antes de ir para casa. A praça sob a estranha luz azul. É descobri que haviam cores, todas elas, mais brilhantes que o normal. O pé de acácia derramava amarelo pelo chão, e as roseiras timidamente distribuíam um rosa claro. Nunca tinha percebido aquelas florzinhas roxas no meio do gramado, e como aquele mato tinha a parte de baixo avermelhada.

Fui andando em direção ao ponto do ônibus, estava quase na hora de ir pra casa fazer alguma coisa muito séria que não lembrava direito o quê. Tinha que atravessar a rua e pegar o ônibus voltando, que com certeza estaria lotado pelo horário, mas se eu ficasse deste lado de cá o pegaria indo, e com certeza vazio. Mas demoraria mais quarenta minutos, e estava muito atrasado pra resolver uma coisa séria lá em casa. “Ah, que se dane”, pensei. Peguei o ônibus vazio, sentei do lado do Sol. Apesar do Sol incomodar a vista eu estava me acostumando, e estava muito divertido ver como as coisas estavam brilhando tanto.

O caminho da ida era pela praia, e caramba… Que dia bonito! O mar estava radiante, o cheiro da maresia no vento, as pessoas caminhando na orla. Aquelas pessoas pareciam caminhar em câmera lenta, com o vento nos cabelos, eram todas tão brilhantes, combinando com a paisagem. Sem pressa… sem nada urgente para fazer em casa. Tinha uma madame com um cachorrinho em um carrinho de bebê e uma criança na coleira, e aí nesse momento eu tive certeza que devia ter tomado drogas. Mas eu acho que não, porque a velhinha no banco da frente também viu, balançou a cabeça e fez o sinal da cruz, balbuciando qualquer coisa sobre o fim dos tempos.

Mas se não eram drogas, o que seria? Porque o mundo estava tão brilhante, tão bonito? Eu me perguntava, mas ao mesmo tempo não queria saber a resposta, eu só queria que o mundo ficasse brilhando pra sempre.

O ônibus fez a curva do fim da linha e retornou, e a praia ficou para trás. Agora em frente a minha janela uma sequência de prédios altos impedia o brilho das coisas. O mundo saiu da câmera lenta, e as pessoas na calçada passavam apressadas, segurando as bolsas ou atrasadas porque tinham algo urgente para resolver em casa, talvez. Outras pessoas nas calçadas, por sua vez, não tinham pressa, mas também não se moviam em câmera lenta: elas simplesmente pararam. Estavam lá, sentadas ou deitadas, sem nada para fazer, sem nada urgente para resolver. Estavam fora do mundo.

O ônibus foi enchendo sem que eu percebesse, lotado de gente voltando do trabalho. Tinha uma moça grávida em pé, resolvi dar meu lugar e ela agradeceu. Fiquei no lugar dela, imprensado, e o sol já tinha se posto atrás dos prédios, ou não, sei lá. Já estava escuro. Já estava opaco. Nada mais brilhava como antes. É aí finalmente, me lembrei o quê de tão urgente eu tinha para resolver.

Dara Pinheiro
Enviado por Dara Pinheiro em 08/12/2021
Código do texto: T7402835
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