Os buracos que a vida tem

“Às vezes a gente pensa que está num asilo de loucos. E de certa forma está.”

Charles Bukowski

Tem um buraco bem no meu estômago. Pode ser fome, mas geralmente é tédio. Tem fendas e rachaduras no asfalto, mas é falha da administração pública. Olho para cima e vejo a fenda infinita do céu, rodeada de estrelas, turbilhonando como um furacão cósmico. No meu crânio os sete buracos da cabeça e, ao redor de mim, os setenta vezes sete buracos do mundo. Quanto a isso, nada posso fazer porque sou um tipo de buraco onde caio, ou me jogo, todo santo dia. Pensando assim entrei na primeira abertura barulhenta à frente. Era o bar, uma das várias igrejas onde congrego.

O calor lá dentro sufocava e o ambiente estava enfumaçado e cheirando a álcool e perfume vencido, mas havia luz. Num rosto triste e redondo, dois olhos brilhavam como um farol na escuridão.

Ela olhou para mim como se não quisesse nada, mas os olhos indicavam o contrário, por isso me aproximei lentamente empurrando a garrafa de cerveja no balcão de concreto. Ela balançou a cabeça para o meu lado, passando a mão nos cabelos encaracolados que cheiravam bem. O cheiro deles criou uma barreira de proteção entre nós e o restante do bar, pensei. Os cabelos eram iguais a pétalas vivas, tão vivas quanto beija-flores e acenavam os cachinhos para mim parecendo dizer “vem”.

Eu fui: primeiro encostei um cotovelo no braço dela, a seguir risquei minha unha nas costas da sua mão imóvel e quente e, em seguida, encostei a perna esquerda na meia-calça preta dela. Ela piscou para mim, levantando o copo pela metade. Eu pisquei de volta e o enchi até a borda. Ela sorriu.

Eu já armava um sorriso quando senti uma mão pesada e peluda apertar meu pulso, prendendo ao balcão. Me virei nervoso, mas me acalmei rapidinho quando vi que era um caubói alto e mal encarado que soltava faíscas dos olhos vermelhos. Tentei retirar minha mão e não consegui. Com a outra mão ele segurava meu cotovelo e se quisesse quebrar meu braço era só torcer. Fiquei quieto só ouvindo.

No meio do barulho do local entendi perfeitamente ele falando que a moça estava acompanhada. Ainda olhei para ela esperando uma confirmação, mas ela abaixou a cabeça e acendeu nervosamente um cigarro. Daí me afastei tão depressa quanto a fumaça que subia em direção ao teto. Dei uma nota ao garçom e meti os pés para fora dali. Saí da porta do bar para o portal da noite.

Lá fora soprava um vento livre e frio que levantava partículas de poeira até o meu rosto quente e triste. Olhei para a caverna do bar e olhei para a gruta do mundo à minha frente e saí andando, pulando os buracos da calçada como um bailarino bêbado.

Depois de caminhar alguns quarteirões me deparei com uma cena estranha: na calçada de um terreno baldio um cachorro magro latia para a abertura de um buraco. Latia compulsivamente.

Passavam pela rua outras pessoas que, mais curiosas que eu, se aproximaram para ver. Jogaram pedras no cão e o afugentaram do local. Ouvi quando eles falaram que tinha um homem caído lá dentro. Logo depois não pude mais ouvir, pois o ajuntamento de pessoas era tanto que parecia uma festa de virada de ano. Muitos se admiravam do acontecido, alguns estavam preocupados, outros estavam felizes por não ter sido eles quem se deu mal.

Por mais cruel que possa parecer eu também fiquei contente. Afinal estava vivo, quase bêbado e a noite tinha apenas começado. Foi só depois do que vi que me deu certa tristeza. Uma tristeza passageira, mas que deixa marcas do tipo queimadura. No entanto, se a queimadura é na pele dos outros, pode até arder que não dói. Esse era o meu caso.

Estava assim: parado dando uns goles na garrafinha, recostado em um muro velho. Olhava distraído sem querer me aproximar. Só ouvir já bastava. E bastou ouvir alguém gritar que o fulano lá no buraco estava morto para o conhaque descer quadrado e amargo pela minha garganta.

Guardei a garrafa no bolso e acendi um cigarro. Trocava de pernas esperando o desenrolar da situação. Cheguei até a sentar em um caixote de supermercado, mas ele se quebrou e caí de bunda na calçada. Praguejei. Já queria ir embora quando ouvi o barulho e os gritos de duas pessoas que vinham correndo do bar onde eu estava antes. Era um caubói alto e uma mulher de meia-calça. Passaram por mim sem me notar e deixaram para trás um rastro de cheiros conhecidos: álcool, nicotina e perfume barato. Deixaram ainda outro tipo de odor que só é sentido por quem já sentiu antes e sentiu muito: o cheiro do medo. E foi seguindo esse cheiro que me aproximei um pouco mais da tragédia.

Vi quando alguém improvisou uma corda e desceu no fosso, que não era fundo, retirando de lá o corpo do homem. Vi as pessoas lamentando a má sorte do morto, ouvi outros cochichando um pouco mais afastados, porém o que mais me chamou a atenção foram os gritos do caubói grande, chorando e dizendo para as pessoas ao redor que aquele homem morto era um amigo seu. A mulher tentava consolá-lo, mas ele não deixou. Empurrou-a, gritou com ela. E quando minutos depois chegou a polícia, o morto e ele foram para a delegacia mais próxima.

As pessoas saíram devagar. Passaram por mim como fantasmas ou eu é que era um fantasma para elas. Nenhuma me viu ou quis me ver. Eu já me preparava para ir embora também, limpava a poeira da calça e acendia outro cigarro quando ouvi a mulher me chamar. Parei e esperei por ela. Ela chegou.

Estava triste e cansada. Havia marcas de maquiagem derretida em seu rosto. Os cabelos estavam em desalinho, belos e encaracolados e cheirando a suor. Trazia nas mãos um par de tamancos de salto alto. Isso tudo eu vi numa olhada só. Foi apenas quando me concentrei em seus olhos que pude demorar uma eternidade: eles ainda brilhavam. Brilhavam como quando a vi no bar. E assim que estendi a mão para ela, eles brilharam mais ainda. Depois já não vi nada porque caminhávamos de mãos dadas e ela olhava para a frente, mas sei que me via pelo canto dos olhos. Senti que me via, como senti a quentura de sua mão na minha.

Caminhamos descendo a rua, na direção contrária a do bar. Queria levá-la para casa, mas refleti melhor e deixei que ela me conduzisse. Para mim não importava o caminho, só importava caminhar. Tentei puxar assunto, porém não pensei em nada razoável para dizer. Ofereci um gole e ela não aceitou. Saquei um cigarro e ela fez que não. Então descíamos em silêncio a rua esburacada.

Estávamos tão concentrados em caminhar que não notamos que alguém nos seguia. Paramos abruptamente e olhamos para trás. Sob a luz dos postes avistamos o cachorro que descia timidamente a rua em nossa direção. Ela me olhou, pela terceira vez na noite, com aqueles olhos iluminados e me perguntou sem falar, apenas com trejeitos de olhos e sobrancelhas, o que deveríamos fazer. Eu dei de ombros e sorri. Ela sorriu também. Gargalhamos juntos enquanto o cão latia amistosamente.

Olhei para trás novamente e o cachorro magro e velho estava bem perto de nós. Paramos e esperamos ele se aproximar. Ela estalou os dedos para ele. Ele abanou o rabo e se sentou. Ficamos os dois olhando para o cão que olhava do meu rosto para o rosto dela. Era um cão infeliz, dava pra ver nos olhos dele, mas tinha boas pernas e nós também.

Desviando dos buracos, que agora eram maiores porque eram da periferia, fomos os três caminhando sob o clarão da lua. Ela recostou-se ao meu ombro e o cachorro emparelhou-se conosco. Acredito que estávamos indo para a casa dela, ou para qualquer lugar onde a noite pudesse ter um fim.

make
Enviado por make em 13/12/2021
Reeditado em 10/01/2022
Código do texto: T7406587
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