Lição de Vida

Nos rincões e sertões desta terra a vida nunca é fácil.

Nestes lugares muitas pessoas padecem com a fome, com falta de infraestrutura, com a falta de condições para o desenvolvimento da população e com a falta de uma boa educação.

Nestes lugares as pessoas se contentam com pouco, se conformam com a falta do básico e as famílias geralmente são numerosas. Na maioria das vezes não têm noção de métodos contraceptivos e a libido parece que é proporcionalmente inversa à instrução e cultura.

Eu nasci num destes lugares abandonados pelos governantes, sem perspectiva, sem esperança.

Nasci nos anos 1970. Eu sou o primeiro filho da família. E atrás de mim, uma turminha grande. Quando eu tinha doze anos minha mãe já tinha parido dez filhos. Alguns deles não sobreviveram. Algumas vezes ela teve aborto espontâneo, provavelmente devido às condições de sobrevivência. Muitos já nasciam fracos e viviam poucos dias. E meus pais continuavam fazendo filhos. Ao todo, minha mãe pariu dezesseis filhos. Apenas oito sobreviveram.

Na minha infância eu sempre sonhava com uma vida melhor. Sonhava estudar e ser um dia um doutor. Acho até que sobrevivi de teimosia e pela vontade de realizar meus sonhos.

Na região tinha muitas fazendas e os proprietários, que muitas vezes ainda eram chamados de coronéis, sempre passavam pelo nosso vilarejo. Eu ficava olhando aqueles lindos carros e caminhonetes e sonhava um dia ter um daqueles.

Quando cheguei na idade escolar eu fui matriculado em uma escola rural que tinha ali. Eu precisava ir a pé. Um quilometro e meio pra ir e um quilometro e meio pra voltar. Mas eu não faltava às aulas por dois motivos: lá eu tinha duas refeições, na hora que chegava e mais tarde, quase na hora de ir embora e lá eu aprendia a ler e as matérias básicas da primeira fase dos meus estudos.

Muitas vezes as únicas refeições que eu fazia era na escola.

Por diversas vezes eu passei fome e às vezes a fome era tanta que eu queria estar no lugar dos meus irmãos que não sobreviveram.

Só quem já passou fome sabe o que significa ter o estômago roncando e não ter o que comer, ter que dormir pra enganar a fome.

Meu pai nunca teve um emprego fixo. Trabalhava para os fazendeiros da região e nem sempre tinha trabalho.

Mas eu nunca parei de sonhar. Eu conseguia aprender bem na escola e sempre me empenhava e procurava aproveitar todas as oportunidades de adquirir conhecimento. Meus irmãos não se importavam com isto. Eram conformados com aquela situação e sina.

A escola ali só tinha as quatro primeiras séries e geralmente era este o estudo que as pessoas daquele lugar tinham. Mas eu queria muito mais. A professora sempre me emprestava livros que eu lia avidamente.

Quando eu terminei a quarta série, nomenclatura da época, eu implorei à professora que me ajudasse a continuar os estudos.

Ela prometeu que faria o que fosse possível. Mas os dias iam se passando e eu estava ali, sem condições de continuar meus estudos. Precisava fazer pequenos trabalhos para ajudar em casa, mesmo tendo apenas onze anos.

Sempre que passava por lá algum daqueles coronéis latifundiários, eu pedia que ele me ajudasse a sair dali pra estudar. Eles só me olhavam com desdém e iam embora.

Eu estava sentindo que minha chance nunca chegaria, mas não parava de sonhar e pedir a Deus que um milagre acontecesse em minha vida tão sacrificada.

O tempo foi passando, eu já estava com quase quatorze anos e tinha que trabalhar na roça dos coronéis, mas quando chegava eu sempre ia ler os livros que de um modo ou outro eu conseguia emprestado.

Meu pai não gostava que eu ficasse lendo. Dizia que aquilo era coisa de mariquinha. Mas eu não me importava, a leitura me levava para o mundo dos sonhos.

Uma noite ele me arrancou o livro das mãos e disse que eu precisava virar homem.

Dias depois ele me entregou a uma mulher para que ela me transformasse em um “homem”, como se eu já não fosse um homem. Eu fiquei constrangido e sem saber o que fazer. Mas meus hormônios falaram mais alto e diante daquela mulher nua e provocante eu fiz o meu papel de macho.

Cumpri a vontade do meu pai e me transformei no “homem” que ele queria. Mas eu não queria pra mim aquela sina de fornicador e reprodutor tosco e de ignorante miserável que meu pai seguia e queria me impor.

Minha irmã de treze anos já estava grávida e seguiu com seu homem para formar uma nova família, provavelmente numerosa e miserável também. Meus pais até acharam bom pois era menos uma boca pra comer.

Um dia eu estava trabalhando na fazenda de um médico da capital. Naquele dia ele estava na fazenda e passou por onde estávamos trabalhando. Eu me armei de toda a coragem e de toda a minha vontade de mudar de vida. E pedi a Deus que me ajudasse:

-Doutor?

Ele olhou. Eu trêmulo de medo disse:

-Posso falar com o senhor um minuto?

-O que você pode querer falar comigo, seu porqueira, seu moleque.

-Doutor, eu quero ter uma chance de estudar, eu quero ser um doutor um dia. Eu leio muitos livros e fico sempre sonhando em ter uma oportunidade.

-Venha aqui, seu moleque. Você é muito atrevido.

Eu tremia ao me aproximar dele, pensei que ele iria me castigar.

-Você acha mesmo que pode estudar e chegar a ser um doutor.

-Acho, sim senhor.

-Você fala muito bem. Quer dizer que aprendeu a ler e sempre lê alguns livros?

-Sim. Sempre que eu encontro alguém pra me emprestar eu leio. E fico sonhando com o mundo das histórias dos livros.

-Se tivesse uma oportunidade, você seria capaz de se agarrar a ela ou uma vez na cidade se tornaria um boêmio cachaceiro como acontece com tantos sertanejos que vão pra lá?

-Se eu tivesse uma oportunidade, eu me agarraria a ela com todas as forças que tenho.

-Você é um sonhador, moleque.

Ele me olhou com desprezo e disse:

-Onde você mora?

-Moro aqui no vilarejo ao lado.

-Qual o seu nome?

-Vicente, que nem meu pai. Moro logo na entrada do vilarejo.

Ele virou as costas e se foi. Eu fiquei decepcionado mais uma vez. Pensava que minha oportunidade não chegaria nunca.

Ele estava passando uns dias na fazenda e todos os dias eu o via. Eu achava lindo aquele jeito de doutor dele. Quando estava na fazenda ele fazia consultas de graça e cuidava de todos os que trabalhavam ali e até de outras fazendas e dos vilarejos ao redor. Eu ficava encantado com esta atitude dele. Todos os fazendeiros ali eram arrogantes.

No domingo à tarde eu estava na varanda lendo um livro. Meu pai estava dormindo depois da carraspana habitual de todo domingo.

Pouco depois parou na porta de casa uma caminhonete. Era o doutor. Ele desceu e perguntou por meu pai.

Eu disse que ele estava dormindo e pedi que não falasse pra ele do meu atrevimento de importuná-lo.

-Mas se eu não falar com ele, como vou te levar para a cidade pra estudar?

Eu não estava acreditando.

-É sério, doutor? O senhor vai me ajudar?

-Chame seu pai logo que estou com pressa.

Eu sai correndo pra dentro de casa gritando meu pai.

Ele saiu lá fora meio tonto ainda. O doutor conversou com meu pai e disse que queria me levar pra trabalhar para ele e para estudar. Meu pai já o conhecia há muito tempo e não ousou dizer não.

-Junte as coisas do moleque, inclusive certidão de nascimento. Eu vou levá-lo comigo.

Minha mãe chorava e dizia que não queria que eu fosse. Mas eu acabei indo. Aquilo era um sonho pra mim. Eu nem cabia em mim de tanta felicidade.

Estava começando o ano letivo. Aquele homem me matriculou num colégio e eu me agarrei àquela oportunidade com todas as minhas forças.

Ele morava em uma casa enorme e eu fazia pequenos serviços, inclusive de jardineiro, quando não estava na escola e morava nos quartos dos empregados da casa. Eu trabalhava em troca de casa, comida, roupas e a chance de estudar. Mas não me importava, Eu estava tendo a chance que sonhei.

Apesar de milionários e poderosos, eles não eram arrogantes. Um dos filhos dele simpatizou comigo e me ajudava nas atividades escolares e eu me saia bem na escola. Eu era bem mais velho que meus colegas mas não me importava. Alguns me desprezavam, outros me tratavam mal por não ser do meio deles, mas outros me tratavam bem e alguns até me ajudavam e se tornaram meus amigos.

A biblioteca da casa era enorme e eles sempre me emprestavam livros que eu lia depois do trabalho e das atividades escolares.

Todas as vezes que o doutor ia até a fazenda ele me levava pra ver meus pais e irmãos. E eu sempre passava as férias lá.

Um dia eu disse pro doutor que queria ser médico. Ele riu de mim. Perguntou se eu achava que tinha condições de ser médico.

-Sim, acho que tenho condições. Se o senhor me ajudar, depois que eu formar eu pago tudinho que o senhor gastar comigo. Assino até papel, se quiser.

Ele deu uma gargalhada:

-Você realmente é muito atrevido, mocinho. Mas eu gosto desse seu atrevimento. Vamos fazer uma coisa. Se você passar no vestibular para a universidade federal, eu custeio seus estudos. Mas você vai me pagar mesmo. Vai assinar papel.

Eu me desdobrei, estudava dia e noite, procurei saber de todas as manhas do vestibular.

E eu passei.

Aquele foi um dia feliz na minha vida. Eu consegui, eu cheguei onde eu queria. Agora faltava eu conseguir concluir o curso.

E eu me esforcei mais ainda, estudava muito e ainda conseguia tempo pra fazer as tarefas na casa do doutor.

E eu cheguei lá.

No dia da minha formatura eu chorei como uma criança. Meu pai sempre me disse que homem não chora, mas o que importa? Homem chora sim. Homem se emociona e se alegra. Homem tem sentimentos.

Eu me formei com quase trinta anos, mas me orgulhava imensamente daquela vitória.

Eu cheguei lá e provei que qualquer um que realmente queira e se esforce pode também chegar a qualquer lugar.

Eu dediquei e agradeci aquela vitória ao doutor que tanto me ajudou. Ele acreditou em mim e me deu a chance que ninguém deu.

Eu fiz um ótimo curso e me tornei um médico dedicado e bem sucedido. Mas nunca me esqueci de minhas origens. Nunca neguei atendimento a quem precisasse dele. Sempre tirava um tempo pra atender comunidades carentes. E pude ajudar meus pais e meus irmãos, que nunca mais passaram fome e nem dificuldades na vida..

Eu fui privilegiado e tive a sorte de encontrar aquele homem tão bom pra me oferecer uma oportunidade. E sempre que alguém me pediu ajuda eu tentei ajudar.

Quisera houvesse muitos e muitos Vicentes, dispostos a lutar, estudar e ter uma vida melhor.

Quisera houvesse muitos e muitos doutores dispostos a dar a mão a Vicentes dedicados e cheios de vontade de estudar e ser alguém na vida.

Nádia Gonçalves
Enviado por Nádia Gonçalves em 14/12/2021
Reeditado em 14/12/2021
Código do texto: T7407177
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2021. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.