( Do tipo Luís Fernando Veríssimo)

 

Felisberto era seu nome de nascença, mas só o ouvia em ocasiões especiais: quando sua mãe iria ralhar por uma peraltice ainda criança ou quando Laurita "estava de lua".

Depois que se aposentou do ofício de radialista, Felisberto nunca quis outra profissão. Embora fosse cedo que essa condição o tivesse visitado, preferiu os livros, jornais e cruzadinhas. Não adepto da televisão, vivia esparramado na poltrona da varanda vendo a vida dos outros passar, enquanto nem se lembrava da sua.

Naquele dia, parecia que a normalidade havia sido picada pelos pernilongos e estava alvoraçada: era o vendedor de lençol na campainha, o de queijo no interfone, o de gás na motoquinha triciclo e o telefone, que tocou pela terceira vez:

- É da funerária?

- Não, minha filha deve ser engano. O DDD, aqui é 31.

Passos leves até a poltrona, se não fosse a intervenção de Laurita esbaforida:

- Que "telefonaiada" é essa? Como levantou todo saltinho, deve ser alguma "sirigaita" ou "cacho" antigo.

Felisberto que já estava nervoso com o movimento atípico da casa e as ligações, fincou os óculos nas narinas, sentou-se ao lado do telefone, pesquisou as últimas ligações e apertou a discagem, do outro lado a voz que o perseguia naquela dia:

- Alô. Com quem você quer falar?

- Quem fala?

- É Alice Anunciação. Quem deseja?

- Aqui é da funerária o Céu é o limite e a sua subida está próxima e você foi contemplada em nosso sorteio de fim de ano com um plano plus prime VIP, onde estão incluídos os serviços de urna, escolha de coroa de flores, opção de maquiagem fria, incluindo veículo de transporte para retirada e devolução do corpo, dependendo das condições em que se encontrar. Pode me dar os seus dados completos, por gentileza?

A mulher do outro lado da linha parecia não acreditar no que ouvia e repetia a negativa de forma violenta:

- Vocês estão ficando malucos. Isso lá é coisa de sortear. Não participo de sorteio nem de vivos, quem dirá para mortos. Liguei pra um número de funerária hoje apenas para saber se tinham urnas para locação, tenho um evento "Festa das Bruxas", e o grupo exigiu uma urna. Pelo amor de Deus, estou até passando mal, que maluquice é essa?

- Não é maluquice, minha senhora. Digo, senhora ou senhorita? Como devo chamá-la, além do mais, como nunca sabemos qual será a nossa hora, devemos nos preparar, esse assunto não pode ser tabu. Abaixo ao preconceito! A senhora prefere um padre ou pastor para a encomendação da alma? Tem alguma religião? Quer carreata ou procissão?

- Eu vou desligar essa merda se não parar com a brincadeira.

E assim, ela o fez. Mas Felisberto estava eufórico com a brincadeira e tentou mais umas sete ou oito vezes, até que o telefone foi desligado. Levantou-se do sofá e voltou para sua espionagem da vizinhança com cara de menino que fez arte.

Depois de umas três ou quatro horas do ocorrido, já tendo a família tomado o café, toca o escandaloso telefone a sua campainha:

- Alô. Aqui é Cabo Antunes do Quartel de Polícia de Contagem e recebemos uma ligação alegando que este telefone estaria passando mensagens tipo trotes para pessoas comuns e trabalhadoras, uma delas, inclusive, foi acometida de uma crise de ansiedade tendo sido levada para o hospital. Qual o nome do senhor? Mora sozinho? Tem quantos anos? Filhos e netos estão na casa?

Felisberto suava o corpo e as mãos como se tivesse acabado de sair da academia após um treino de pernas.

- Não, senhor. Só minha esposa e eu moramos aqui. Somos idosos, não temos filhos. Não será uma clonagem? 

- Infelizmente, isso é bastante comum hoje. Como o senhor se chama? Tem certeza que não teve visita de adolescentes, crianças ou similares?

- Felisberto, senhor. As suas ordens. Sem visitas.

- Então pode mesmo ser um engano, mas fique atento à presença de sons estranhos à linha e qualquer novidade pode nos ligar. Obrigada pela atenção.

 

Felisberto, tremendo feito uma vara verde, levanta do sofá, ainda em estado de choque, quando à sua frente, Laurita intervém:

- Pensei que sua mira só errava o tampo do vaso. Enganei-me. Vai trocar essa roupa, depravado. Vou mandar desligar esse telefone. Só me faltava essa. Homens, homens... A cabeça fica num lugar diferente.

Mônica Cordeiro
Enviado por Mônica Cordeiro em 06/01/2022
Reeditado em 06/01/2022
Código do texto: T7423134
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