A Cadeira

09.01.22

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O acaso acontece a qualquer momento da nossa vida. Ele nos acompanha cotidianamente, aguardando uma oportunidade para se efetivar. Não temos como prevenir, se desenrola totalmente fora da nossa vontade e controle. É irreversível, infelizmente.

Foi assim o que me aconteceu ao viajar à noite por estrada no interior daquela região nova e desconhecida. Era gerente comercial de importante indústria do ramo alimentício. Visitava os mercados e supermercados com maior volume de vendas das pequenas e médias cidades, conhecendo pessoalmente os seus donos e as suas lojas. Gostava do meu trabalho, do contato com as pessoas, das peculiaridades de cada local, do seu povo e costumes - uma experiência rica.

Noite avançada, seguia pela via com pouco tráfego procurando um local para fazer uma refeição, pois estava faminto. Voltava para a maior cidade na região, na qual dormiria, e pegaria o voo de retorno para a minha casa logo cedo na manhã seguinte. Estava feliz. As visitas foram ótimas, os produtos da empresa eram bem aceitos e novos pedidos foram feitos. Para mim, mais receitas e reconhecimento da minha capacidade profissional. Uma vitória a ser comemorada.

Uma enorme lua cheia iluminava quase que totalmente a pista, com seus contornos delineados pelo escuro do asfalto engolido pelo carro, com a paisagem lindamente prateada. Essa visão me acalmava, sentindo-me realizado. Vi ao longe uma iluminação indicativa de posto de combustível, provavelmente com uma lanchonete ou loja de conveniência. Ótimo, vou matar a minha fome. Eu mereço!

O posto era pequeno, e ao seu lado, uma lanchonete também pequena. O prédio era térreo com telhado avançado formando uma varanda, com mesas e cadeiras de plástico brancas cobertas com toalhas coloridas. Uma placa indicava o seu nome: “Coma Bem”. Sugestivo.

Estacionei na entrada do restaurante. Entrei. A iluminação do local era fraca, mas suficiente, com mesas e cadeiras em madeira pesada. Havia algumas pessoas no salão, homens exclusivamente. Estava de camisa social branca, gravata e a calça do terno escuro que usava. Olharam-me com interesse e desconfiança.

Estava quente, era fevereiro, e tomavam cerveja. Eram pessoas de trabalho duro e pesado, via-se pelas suas mãos grossas e gordas, calejadas e rostos de vincos cinzelados pelos dias sob sol forte. Pessoas rudes, que ali relaxavam após uma dura jornada. Uma cerveja gelada iria bem também para comemorar, ponderei. O salão se aquietou a minha entrada. Aguardavam curiosos, ouvir o falar do “janotinha” que chegou.

Cumprimentei-os com um aceno de cabeça e me sentei em mesa isolada. O atendente, provavelmente dono do local, pois só havia ele no balcão, disse-me com o braço direito apoiado no tampo e mão no queixo, estático:

-Boa noite.

-Boa noite – respondi-lhe firme, percebendo o silencio sepulcral do ambiente.

Sobre a mesa, vi o cardápio com os tipos de lanches. Na estufa envidraçada no balcão, alguns pastéis e coxinhas.

-Para começar, uma cerveja bem gelada, por favor – pedi com voz impositiva e alta. Os olhares para mim se mantinham. Fiquei incomodado, mas queria matar a minha fome e sede e seguir viagem.

Veio a cerveja, e perguntei ou homem:

-É o dono daqui, não?

-Sim, sou.

-Grato pela cerveja, e vou comer esse lanche, um churrasco com queijo pode ser?

-Vou ter que esquentar a chapa, pois nesta hora da noite a desligo por falta de uso.

-Sem problema, eu espero com a cerveja.

-Vai demorar um pouco.

-Eu bebo devagar.

-Tá bom, o senhor é quem sabe.

Notei a má vontade do dono, a mesma sensação com relação às pessoas ali nas outras mesas. Estranhei, pois com quem tive contato nas cidades daquela região, eram camaradas, atenciosas e delicadas. Talvez, por serem da “roça” fossem assim, brutas. Coloquei a mão na garrafa: quente!

Vi que as servidas nas outras mesas, o suor das garrafas mostrava estarem geladas. Não é possível, será que acabaram as geladas? O congelador esta lotado, posso vê-las pela porta de vidro. O que acontece?

-Senhor, por que nas mesas têm geladas e na minha não? – disse alto ao dono que se mantinha colado ao balcão como uma estátua, observando-me fixamente.

Levantei-me com a cerveja quente e fui até ao dono, e vi que a chapa não estava ligada. Não acreditei!

-A chapa não esta ligada? O que acontece aqui? – disse-lhe irritado.

-Aqui é da nossa gente, não de pessoas bacanas que acham que com dinheiro tudo pode! – respondeu-me ofensivamente.

Indignado, dirigi-me decidido até a geladeira. Ao me deslocar, um dos trabalhadores se levantou e se interpôs. Era um homem grande e forte. Mas eu também sou e lutador de jiu – jitsu. Não me intimidei, dizendo-lhe imperativo: não faça isso!

O outro começou a rir desdenhosamente, tinha poucos dentes na boca, colocando a sua mão no meu peito.

- Não faça isso! – repeti com voz forte.

-Faço sim. Não vai tomar da nossa cerveja gelada não, seu merda engravatado!

Não poderia mais fugir da situação, pois não aceitaria aquele desaforo estúpido. Em uma fração de segundos em que o desdentado voltou o seu olhar para os demais sorrindo desafiadoramente, peguei-lhe o braço que empurrava o meu peito e dei-lhe um golpe, lançando-o violentamente ao chão. Mas no caminho havia uma cadeira. Bateu a sua nuca diretamente no espaldar dela em madeira firme, quebrando-lhe o pescoço na hora. Morrera o pobre coitado. O acaso acontecera naquele momento, infelizmente!

Escutei o barulho seco da quebra do osso da nuca do desafortunado valentão, como os demais, que atônitos e estáticos pela rapidez do acontecido, ainda se mantinham sentados nas cadeiras.

Então, todos se levantaram e vieram em minha direção. Defendi-me o quanto e como pude, mas eram muitos. Imobilizaram-me. Apanhei bastante.

O dono do local chamou a policia enquanto seguia o entrevero, que logo chegou. Fui preso e processado por homicídio culposo. Alguns queriam doloso, pois todos no bar disseram que fui quem começou a briga. Como poderia provar que não? E por ser lutador de artes marciais, qualificada como arma branca, uma imputação a mais pela aplicação do golpe.

Não fosse o acaso da cadeira inesperadamente posicionada ali no exato local e que matou o pobre homem, estaria eu hoje seguindo a minha vida, talvez diretor na indústria que trabalhava. E o outro, provavelmente vivo.

Preso e cumprindo pena injustamente de não poucos anos, escrevo este texto mostrado que o imponderável e o imprevisível, o acaso acontece a qualquer momento, a qualquer um e em qualquer lugar. Acompanha-nos dia a dia.

E cuidado: se passarem por um restaurante na estrada de nome “Coma Bem”, fuja!

Nota do Autor:

Este é um texto de ficção e qualquer semelhança com o seu enredo, é mera coincidência.

Fernando Ceravolo
Enviado por Fernando Ceravolo em 09/01/2022
Reeditado em 09/01/2022
Código do texto: T7425612
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