O PÉ DE CASTANHEIRA

Aquele pé de castanheira sempre foi a minha agonia. Era uma árvore enorme, aos meus olhos de oito anos de idade, tão grande que seus galhos atravessavam a rua e iam terminar na outra margem. Eles formavam uma espécie de telhado, ou folhado, sei lá! Que oferecia sombra e abrigo para quem precisava fugir do sol ou da chuva, naqueles dias quentes de verão no litoral.

Sim, essa árvore ficava na pequena praia de Carne de Vaca, distrito de Goiana em Pernambuco, onde passávamos os meses de férias no verão. Claro que hospedados por benevolência, na casa de um casal amigo dos meus pais. Minha mãe tinha uma alma inquieta e cheia de esperança, ela estava sempre envolvida em qualquer coisa que acreditasse, fosse fazer o bem as pessoas. Então estava ajudando a fundar uma igreja evangélica nessa localidade e arrastou todos nós para lá, de dezembro a final de fevereiro. E nós achamos a oitava maravilha do mundo!

Para mim, aquele era o lugar perfeito, exceto por aquela árvore no meio do caminho. Acho que se Drumond a tivesse visto, não teria escrito sobre uma pedra! Mas, voltemos a árvore! Ela era viçosa, suas folhas tinham um verde escuro e brilhante como se houvessem sido enceradas uma a uma. Seu tronco e galhos traziam as marcas do tempo, eram grandes, grossos e carcomidos, enrugados como se fosse uma árvore anciã.

Sobre ela contavam-se várias histórias: que havia um bebê enterrado em suas raízes, que um homem se enforcou em seus galhos, que antigamente os donos daquelas terras amarravam as pessoas escravizadas em seu tronco para castiga-las. E por fim, a pior parte, era que esses fantasmas jogavam areia nas pessoas que passavam a noite.

Muitas pessoas alegavam ouvir choro de criança ou gemidos quando passavam por ela a noite. Quando ouvia uma história sinistra dessas, minha imaginação voava, me arrastando pelos cabelos para que eu visse as cenas inteirinhas: do bebê sendo enterrado, do homem se enforcando, das pessoas sendo castigadas, dos fantasmas jogando areia. Então, o pavor se estampava em meu rosto, arrancando gargalhadas de quem estava contando aquelas histórias macabras.

Éramos uma família de dez filhos e meus irmãos mais velhos, não cansavam de nos contar tais histórias, das mais variadas formas, e se divertirem muito do nosso pavor. O Sr. Amaro, a quem meus pais chamavam de irmão, sorria e dizia que tudo aquilo era invenção do povo.

Para completar, naquele verão uma moça que morava na casa do lado oposto ao da mal falada árvore, havia se suicidado por questões amorosas, e os meus irmãos diziam que a alma dela ainda estava lá na casa, pois quem se suicidava não ia para o céu. Como se não bastasse toda a dor que a pobre moça havia passado! Na verdade, esse era um requinte de crueldade que só os irmãos mais velhos sabem utilizar para aterrorizar os mais novos.

O fato é que numa noite de lua bem cheia, nós, os três mais novos, seguimos os mais velhos que foram para a praça e para a calçada da igreja católica, pois, tirando o Sereia Bar, eram os únicos pontos de diversão da pequena vila. Nelas os jovens se encontravam para tocar violão, cantar, conversar e paquerar. Na minha casa éramos seis filhos homens e quatro mulheres. Na época eram quatro rapazes, duas moças, dois meninos e duas meninas que eram eu e minha irmã caçula de dois anos.

Nesse tempo, os irmãos mais velhos mandavam nos mais novos, e nessa noite os meus irmãos rapazes, não queriam que fossemos com eles para a praça, porque sabiam que teriam que voltar mais cedo para nos trazer de volta para casa. Na praia de Carne de Vaca ainda não havia luz elétrica nas casas e as 22:h as luzes das ruas eram apagadas, pois a energia vinha de um gerador a querosene, mantido pela prefeitura. Como era noite de lua cheia, eles pretendiam ficar até mais tarde na calçada da igreja cantando, e por isso, se negaram a nos levar. Então fomos escondidos.

Ao chegarem na praça, quando nos viram, o mais velho disse logo que era para voltarmos por que ele não iria nos levar para casa depois. Meus dois irmãos meninos obedeceram prontamente e voltaram, mas eu achei de ficar brincando na praça, só um pouquinho. Me misturei as crianças que lá estavam e brinquei de anel, pic esconde, garrafão. Até que as mães começaram a chamar as crianças de volta e eu fiquei sozinha.

Então corri para a calçada da igreja e puxei a camisa do meu irmão mais velho, que estava tocando violão e era o centro das atenções, das garotas sentadas a sua volta. Ele olhou para mim com um olhar de canhão, pronto para disparar uma bala, daquelas que afunda um navio inteiro. Eu nem o deixei falar. Fiz carreira sozinha para casa!

A distância não era grande para um adulto, um quilometro e meio, no máximo, mas para as minhas pernas de criança solitária parecia uma légua. Corri com força e agilidade, pensando nos puxões de orelha que iria levar, sem lembrar que no meio do caminho tinha aquela bendita árvore.

À medida que me distanciava da praça o barulho e o movimento das pessoas, também iam se distanciando. De repente, ao me aproximar da castanheira, como uma infeliz coincidência ou como castigo Divino, pela minha desobediência, como disse depois a minha mãe, as luzes da rua se apagaram e com elas todo o meu resto de coragem e energia.

Ao apagar das luzes, a lua tomou conta do cenário e projetou as sombras dos galhos da árvore no caminho. Eles pareciam braços prontos a me agarrarem, as folhas reluziam refletindo a luz da lua e criavam silhuetas assombrosas. Parei involuntariamente, pois minha vontade era avançar, mas o corpo não obedecia, não cumpria meu desejo, então comecei a ouvir as histórias dos meus irmãos, e suas gargalhadas que, eram ainda mais pavorosas que as histórias.

De repente, o vento soprou e eu senti um punhado de areia cair sobre os meus ombros! isso me tirou do torpor, quebrou o transe e eu retomei a carreira que certamente foi a mais rápida que dei em toda minha vida, passando na frente da casa da morta e vencendo a distância que me separava da casa do Sr. Amaro onde estávamos hospedados.

Quando cheguei todos estavam deitados e eu me enfiei debaixo do cobertor no colchão arrumado no chão da sala. Pois a casa era pequena para as duas famílias, não comportava todos nos quartos e as crianças eram organizadas na sala, só a caçula ficava no quarto com os meus pais.

Nessa noite demorei para dormir e sonhei que corria tanto que meus pés ganhavam asas e eu acabava voando. No dia seguinte, contei tudo a minha mãe, ela depois de ralhar comigo e com meus irmãos, falou que quando sonhamos voando é porque estamos crescendo e que aquilo não era areia, mas um pó que caia desse tipo de árvore mesmo.

Pelo meu ato de coragem em ir sozinha para casa, ganhei um certo respeito dos meus irmãos e fui assunto por alguns dias, nas rodas de conversas da calçada da igreja. Mas o certo é que passei um medo tão grande, que me marcou para o resto da minha vida, e hoje, 50 anos depois, estou contando a história dele para vocês.

Magali Ribeiro
Enviado por Magali Ribeiro em 26/01/2022
Reeditado em 28/01/2022
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