*Uma boa idéia

Para quem os conhecia, a cena não era nada incomum. Os amigos, altas horas da madrugada, reunidos na mesma mesa do mesmo bar. Porém, algo estava diferente. Não haviam mais gargalhadas e os “causos” famosos, só um ar de saudosismo que tomava conta do ambiente. Jaime e Sérgio com olhares distantes, perdidos na fumaça de seus cigarros, e Plínio cabisbaixo.

Plínio era um jovem senhor de 42 anos. Metódico, levantava-se sempre às seis horas da manhã, cevava seu chimarrão enquanto sua esposa punha a mesa para o café. Pai de quatro filhos, criado numa família tradicional, fazia questão de tê-los todos reunidos à mesa para o desjejum. Depois da refeição matinal, botava a térmica debaixo do braço, beijava sua esposa e seus filhos e colocava-se a caminho de sua olaria. Mesmo absorvido pelo trabalho pesado e desgastante, sempre conseguia um tempo para receber amigos e clientes com seu senso de humor contagiante, apesar da fama que tinha de alemão teimoso.

Ao final da jornada de trabalho se reunia com seus amigos no bar do Seu Bernardo, um português que viera de trem com a construção da ferrovia que ligava o estado ao sudeste do país. O círculo de amigos era grande, porém dois deles eram presenças sempre certas: Jaime, um taxista que fazia ponto próximo ao bar, e Sérgio, locutor da rádio local que necessariamente passava por ali a caminho de casa. Entre piadas, causos e outras mentiras, outra presença certa era a garrafa da mais pura cachaça fabricada no Alto Uruguai.

Era janeiro e o calor convidava os grandes amigos a deixarem seus trabalhos e seguirem com seus encontros diários no bar do Seu Bernardo. Contudo o Plínio quebrou a rotina durante três dias consecutivos. Quando Jaime e Sérgio já andavam um tanto quanto preocupados com o sumiço do amigo ele reaparece no bar. Seu olhar não era mais o mesmo, não havia aquela alegria e o brilho de sempre. Entrou, puxou sua cadeira para mais perto de seus amigos.

- Sentiram minha falta? Perguntou aos dois companheiros.

- Claro que sim! Disseram os dois em uma só voz.

- Por onde andou esses dias, vivente? Perguntou Jaime.

- No hospital.

- No hospital!? Retrucou Sérgio. Fazendo o que? Um orçamento para a ampliação dos consultórios?

- Não amigo, infelizmente não. Não andava me sentindo muito bem. A patroa me incomodou tanto até que cedi e fui fazer uma consulta. O Dr. Silveira me pediu uma porção de exames.

- E daí? Desembucha homem. Apressou Sérgio, que não gostava de rodeios, ia direto ao ponto, como era de se esperar de um radialista.

- Cirrose.

- Cirrose!!! Caíram os queixos e os copos dos dois.

- Sim. O Dr. quer me convencer que é por causa da cachaça. Mas como pode ser? Ele disse que sou um alcoólatra. Mas isso não é verdade. Tenho domínio sobre meu corpo e sobre a bebida. Mas ele disse que, se eu ainda tiver um pouco de vontade de continuar vivendo, tenho que deixar de beber agora mesmo.

Plínio não parou de beber. Ele era sim um alcoólatra. Não era ele quem dominava a bebida, era a bebida quem o dominava. E a companhia dos amigos no final de cada dia, na mesma mesa do mesmo bar, o levou, em poucos meses, ao seu trágico e prematuro fim.

Bléng, bléng, bléng... Como era de costume, anuncia o sino da igreja matriz daquela pacata cidade, a morte de mais um de seus patrícios. A tarde cinzenta e a garoa fina, cortante devido ao vento, pareciam proclamar a triste despedida que viria. Aos poucos a comunidade foi se dirigindo ao local. Alguns inconformados pela morte lhe ter levado ainda tão jovem, outros tristes por saber que ele poderia ter evitado tal fim, e também uns poucos chateados por ter de deixar o calor de suas casas enfrentando aquele tempo para se despedir do defunto.

A tarde cinzenta e a garoa fina trouxeram uma noite fria. Já era madrugada e os dois amigos não abandonavam seu companheiro. Disseram para os familiares que podiam ir para casa descansar para o enterro no dia seguinte. Eles cuidariam do grande amigo durante a madrugada. Seria o último adeus, os últimos momentos juntos, os últimos instantes de uma história de tantos e tantos anos.

Como não podia faltar no encontro dos três amigos, lá estava uma garrafa da pura cachaça do Alto Uruguai. Jaime, já tomado pela bebida, com o dedo em riste, reprovava o amigo moribundo, alegando ter lhe avisado que a bebida o levaria pro caixão mais cedo do que imaginava. Enquanto isso Sérgio foi servir-se de mais um trago, quando se deu por conta que a cachaça havia terminado. Fazia muito frio. Sérgio disse ao Jaime que ele iria até o bar do Seu Bernardo buscar mais bebida para espantar o frio da madrugada. Jaime, que era muito medroso, se ofereceu para ir em seu lugar. Porém Sérgio não era dos homens mais corajosos desse mundo e também não estava disposto a ficar ali sozinho com o defunto. A solução seria os dois irem juntos ao bar. Mas seria algo desumano abandonar o amigo em suas últimas horas antes de baixar a sepultura. Não havia outra saída...

Para quem os conhecia, a cena não era nada incomum. Os amigos, altas horas da madrugada, reunidos na mesma mesa do mesmo bar. Porém, algo estava diferente. Não haviam mais gargalhadas e os “causos” famosos, só um ar de saudosismo que tomava conta do ambiente. Jaime e Sérgio com olhares distantes, perdidos na fumaça de seus cigarros, e Plínio cabisbaixo, também pudera, estava morto.

*Conto escrito em parceria com minha esposa Nicole Loose.