A Saga de Godofredo - I

08.02.22

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Caminhava sem saber para qual direção ir. Não sabia onde estava, em qual rua ou bairro, cidade. Andava ao léu. As pessoas com quem cruzava eram antiquadas, suas roupas também. Seus movimentos eram lentos e pausados, suas falas emitiam um eco grave e longo. As pessoas, as ruas, as casas, os carros, tudo parecia flutuar como em um barco. Não havia mar ou agua. O céu era incolor. Não havia sol. Não ventava. Não sentia frio ou calor, fome ou sede. Uma estranha nuvem envolvia tudo, como uma névoa que a cada instante embaçava as imagens. Lugar estranho pensou.

-Onde estou e o que aconteceu comigo?

Continuou vagando sem destino, seu andar era pesado e arrastado, sentia um enorme cansaço, quando alguém lhe chamou:

-Godofredo, Godofredo!

Era um homenzinho baixo, de olhos fundos e pequenos, com óculos de aros metálicos e redondos. Suas roupas eram esquisitas e muito antigas, usava polainas e seu cabelo era engomado e dividido ao meio, tornando sua imagem cômica.

Ele começou a rir para aquele baixinho desconhecido que lhe chamava.

-Godofredo? Mas que nome mais sem graça! Poderia ser Wiliam, Ricardo ou qualquer outro, mas Godofredo. Não mereço.

-Sim, você é o Godofredo, filho da dona Marieta com seu Hilário e tem um irmão mais novo, Gustavo – lhe responde mesmo sem ele ter dito uma palavra.

-Onde estou? O que aconteceu? – continuava a pensar enquanto ouvia o falar esganiçado do homenzinho que lhe conhecia.

-Ah, não está entendendo nada, né Godofredo? Vou te explicar melhor o que aconteceu.

-Sim, realmente não sei o que aconteceu e onde estou – balbuciou para o senhorzinho vivaz a sua frente.

-Vamos lá, vou te explicar! Você está no início do século 20, meados dos anos 1900 e todas estas pessoas que lhe olham fizeram parte da sua vida.

-Fizeram? Século 20?

-Seguindo então, você sofreu um acidente e está vagando por sua memória. Tudo o que vê, escuta e sente, está nela. Toda a sua história, da sua família, enfim, de seus ancestrais, estão passeando por ela. Eu sou seu guia. Seu corpo está inerte em uma cama de hospital e em coma faz alguns dias. Pode ou não acordar, vai depender de você.

Atônito escutava aquelas palavras de sonoridade distorcidas ditas pelo senhorzinho desconhecido.

-Está vendo aquele senhor de bigodes e chapéu coco na cabeça? Ele será o seu avô e aquela senhora que conversa com ele, a sua avó. Cumprimente-os!

-Mas como? Eu regredi no tempo? Isso é impossível!

-Você não, a sua memória. Ela é livre e solta para ir a qualquer lugar que queira. Faça um teste! Pense em qualquer época antiga e verá o que digo. Vamos lá! O futuro ainda é inatingível.

Ele continuava sem saber se o que estava presenciando era real ou um sonho. Então, lembrou-se do quadro com o brasão da sua família oriunda da ilha de Malta, para ver se o que lhe dizia o baixinho engraçado era verdadeiro.

Imediatamente estava na beleza mediterrânea da ilha de Malta, com suas casas brancas, mar anil, estranhos barcos a vela e ruas de pedra. As pessoas usavam túnicas árabes e cavalos e carroças eram os meios de transporte. O dia estava radiante. O baixinho agora usava uma mortalha com uma cruz no peito, capacete metálico arredondado e uma enorme espada quase arrastando no chão. Montava um burrico. Estava mais engraçado ainda. Era um cavaleiro das cruzadas!

Ele viu que tinha as mesmas vestimentas do senhorzinho, mas sua espada era de cabo dourado reluzente. Montava um lindo cavalo branco de pelos brilhantes, vestido com uma túnica branca mostrando somente as patas. Um cavaleiro cruzado também, mas um comandante deduziu. Lembrou-se que no brasão dizia que a sua família combateu ferozmente os mouros durante aquela época.

-Viu que não é um sonho? Parece porque a sua memória é que esta comandando as suas ações.

Neste momento, escuta outra uma voz:

-Capitão Godofredo, o comandante Geral quer lhe falar! Disse-lhe um cavaleiro que se aproximava. O homem do burrico desparecera.

-Sim, vamos a ele então – respondeu ao soldado de imediato de forma contundente como um oficial. Suas ações agora eram como se fosse o personagem que estava travestido em sua memória: um guerreiro maltês das cruzadas.

Seguiu até a fortaleza, que dominava toda a baía, com visão privilegiada do Mediterrâneo. Já na nave principal do castelo, encontra-se com o comandante Janet, parando a certa distância respeitando a hierarquia.

- Capitão Godofredo, venha até aqui! diz debruçado sobre um mapa de toda a região, sozinho, o que lhe pareceu estranho, pois sempre estava na companhia de seus generais. Caminhou até lá, vendo que havia preocupação na sua fisionomia.

-Os sarracenos estão se agrupando aqui e devem tentar nos atacar pelo nosso flanco oeste. Tenho informações que estão com mais de 50 barcos e cerca de 3.000 soldados.

-Situação crítica a nossa meu senhor.

-Se não os detivermos, irão direto para a Sicília e seremos trucidados. Nossa Ordem será extinta. É questão de vida ou morte. E conto com você! Já alinhei com os demais comandantes e estão de acordo, mas será uma ação sigilosa. Só eles, eu e você sabemos. Caso vaze a informação, serão todos enforcados. Não podemos falhar!

-Sim, meu senhor, pode contar comigo.

Ao mesmo tempo em que se desenvolvia o diálogo, intimamente ele não entendia nada do que estava acontecendo, mas por sua desenvoltura, estava gostando do que acontecia. Era um sonho com certeza. Vamos em frente! Estava animadíssimo para a sua surpresa.

-Certo – responde o chefe batendo a mão sobre um sinete. A porta pesada se abre e entra no salão uma pessoa que lhe parecia similar: era o baixinho engraçado. Reconheceu-o pelo olhar e feições, pois era ótimo observador.

-Apresento-lhe nosso espião chefe, que irá lhe ajudar nesta tarefa. Não lhe direi o nome, pois têm vários e conforme a situação lhe dirá qual será.

-Olá Capitão Godofredo, será um grande prazer realizarmos essa missão juntos – pisca-lhe agora sem óculos de aros redondos e roupas esquisitas. Estava como um sarraceno, de turbante e túnica bege.

Não acredito, não é possível! Esse senhorzinho vai me infernizar a vida. Mas vamos em frente!

-O mesmo da minha parte! – respondeu-lhe enfático.

-Capitão Godofredo, a missão será vocês se infiltrarem nas tropas dos sarracenos e danificar o maior número possível de barcos, enquanto não chega o nosso reforço de homens da Sicília, que deverá demorar cerca de um mês.

Todas as demais instruções e infraestrutura necessária o general Homero lhes passará. Boa sorte!

Saíram os dois da sala de comando da fortaleza e o baixinho lhe fala:

-Veja Godofredo, tudo se passa em sua memória, ela esta fluindo por fatos históricos que estão armazenados há gerações no seu DNA. Portanto, tem essa desenvoltura e atitudes de um comandante militar, que não imaginava ter. Incrível, não?

-Ah, estou sonhando e gostando? Posso ser ferido ou morto? Se já estou em coma, eu morreria correto? Então nada me acontecerá, não é mesmo?

-Engano seu! Suas ações são reais na sua imaginação e poderão desencadear processos psicossomáticos que poderão resultar na sua morte sim.

-Então estou lutando por minha vida na minha imaginação e na vida real?

-Sim, de certo modo sim. Mas tenho certeza de que o desfecho dessa ação será a contento. Vamos ao encontro do General Homero!

Seguiram os dois, agora companheiros de luta, pelos corredores gelados de pedra do castelo para preparar a missão. Ele estava excitadíssimo em sua imaginação. Será um sonho?

Nota do Autor:

É uma obra de ficção e qualquer semelhança é mera coincidência.

Fernando Ceravolo
Enviado por Fernando Ceravolo em 09/02/2022
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