Sepultando sonhos, enterrando pesadelos

"Viver é super difícil o mais fundo está sempre na superfície."

Paulo Leminski

Tô mais duro do que pau de tarado. Esse negócio de terceirização tá tirando o meu sono. Antes eu recebia por mês, mas agora a terceirizada onde trabalho só me paga por sepultamento. Mês passado enterrei dez e paguei água, luz e aluguel. Se não morrer pelo menos mais cinco até o fim desse mês, vou viver de brisa.

Todo mundo me chama de coveiro, mas coveiro pra mim é quem planta couve. Eu sou agente sepultador e dou valor ao meu serviço. Não adianta ninguém me coagir. Os meus clientes não têm olhos pra me censurar nem boca pra elogiar, então porque tenho que ouvir asneira de quem me paga uma merreca. Se eu e os outros parar, o mundo fede.

É bom que saibam que sou gabaritado! Tenho ensino médio completo. Mereço até ganhar mais do que ganho, mas aqui nessa cidade pequena as pessoas são contratadas para os melhores serviços não pelo grau de escolaridade e sim pelo grau de parentesco.

Já adianto que, apesar disso, gosto do meu emprego porque não preciso ficar sorrindo para os outros que nem esses que trabalham nos escritórios. Aqui sou um cara sério e sou o menos sério de todos que permanecem aqui. Quando estou cansado das caras bobas da rua venho para cá para ver gente chorando.

Estar aqui é como estar em paz, mesmo estando vivo. Agora, eu não conseguiria viver nesse lugar. É silencioso demais. Acho que tem gente que, se pudesse, viveria aqui, pois moram em lugares tão silenciosos, tão verdejantes e com canto de pássaros como os que têm aqui.

Sempre atravesso a cidade para ir pra casa. Para mim é igual sair de um vazio e entrar em um deserto, com a possibilidade de movimento entre um lugar e outro. Só isso já é bom. Enquanto caminho, esqueço o destino.

Outro dia fiquei intrigado. Vi um dicionário velho jogado na lama e pensei logo num cadáver: era um monte de palavras abandonadas. Aquele dicionário úmido e esquecido estava aberto como uma boca muda para o barulho do mundo. Em tudo ele se parecia com gente morta.

É triste admitir, mas ultimamente fico animado quando morre alguém porque, como já disse, toda vez que enterro alguém meu saldo sobe. Imagino que o dono da funerária fica mais feliz que eu. Já comprou até um furgão novo.

Apesar de tudo sou feliz, pois comparo minha felicidade com a infelicidade dos outros. Eles estão sempre enterrando quem amam ou sendo enterrado por eles. Mal comparando, acho que eles se sentem como eu me senti no dia em que meu cão morreu.

Naquele dia fazia frio e ventava. O cachorro tinha ganido e uivado o tempo todo. No fim apenas rosnava baixinho e tremia. Eu havia ido ao veterinário e gastado todo o meu dinheiro para comprar os remédios que ele vomitava sem parar. Depois me disseram que foi envenenamento. Nunca me conformei com isso.

Sepultei ele no fundo do quintal, entre as flores. Tem um tijolo marcando o local e uma cruzinha de madeira. Qualquer um pode pensar que isso é um absurdo e eu digo que absurdo é esquecer um amigo. Se esse amigo fala, late ou mia é apenas um detalhe.

Depois do acontecido nunca mais quis ter um cachorro. As condições financeiras não me permitem. Por isso prefiro assistir sempre os mesmos filmes da Lassie, do K9 e da Patrulha Canina. Com uma saudade no peito fico em frente a casa, às vezes, vendo os cães do bairro passarem, sozinhos ou em grupo atrás de uma boa farra. Estes daí, penso sorrindo, não têm pecados. Será que quando morrerem alguém chorará por eles?

Quando recebo o pagamento vou à zona da cidade vizinha. Levo escondidos rosa ou lírio para presentear as meninas. Elas não cobram menos por isso, mas me abraçam forte e geme de verdade. Eu sei disso porque também sei gemer de mentira.

A volta para casa é sempre o mais difícil. Não tem ninguém me esperando, não tenho amigos de verdade, apenas colegas de copo do bar da vila. Então depois que gasto meu dinheiro eles desaparecem.

Dia sim e outro também vou a pé para o serviço e não é difícil encontrar jogados às margens desta rua esburacada, sacos plásticos com animais de estimação dentro, exalando o mau cheiro. No começo eu sentia ânsia de vômito, agora sinto raiva.

Os animais serviram, adularam e fizeram companhia aos seus donos por toda a vida deles e agora depois de tudo são descartados como lixo. Fico pensando antes de entrar no vazio do cemitério: porque homens e mulheres que aparentam ser tão bons não dão uma sepultura honrada aos seus leais companheiros? Acho que tem muitas respostas para isso, mas nenhuma me convence.

Em um fim de semana qualquer, bebendo sozinho, estes pensamentos voltam à minha mente como insetos em volta da lâmpada. Passo a mão sobre os olhos tentando afastá-los. Desisto. Dou uma grande golada na cerveja, trago meu cigarro e vou me aproximando mais rapidamente da morte do que todo mundo. Fico pensando nisso enquanto meu sangue corre acelerado deixando para trás meu pensamento. Sinto que estou esperando a vida estrear.

De repente, como num palco, ela - a vida -vem dobrando a esquina engolindo com sua boca grande e sua língua quente, as sombras da tarde. Com as mãos nos joelhos eu vejo o cão se aproximando. Suas orelhas apontam para o céu e ele parece, apesar de tudo, bem feliz.

make
Enviado por make em 12/02/2022
Reeditado em 06/03/2022
Código do texto: T7450374
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