Tio João e o futebol fascinante

“Ave humana

lépida

discreta

pés de brisa

corpo dúbio

finta certa.”

Affonso Romano de Sant’Anna

Tio João costumava dizer que o mundo é uma bola. E esparramava uma dúzia delas pelo gramado que ficava parecendo o sistema solar. Ele era nosso treinador e amigo. O único que depois do serviço diário tinha vontade de juntar a molecada para "brincar de bola", como ele dizia sorrindo.

Falavam dele que foi um bom jogador na juventude e só não chegou a profissional porque acertou a trave com a cabeça e depois disso ficou meio doido. Os que não gostavam dele achava que ele era doido completo.

A gente gostava dele doido, meio doido, aluado, meia lua, lunático e fanático por futebol. Quando alguém perguntava para qual time torcia ele falava: “para todos”. Isso dava um nó na nossa cuca, pois tínhamos paixão e fidelidade por um único time.

Tio João dizia que gostava do jogo, da jogada, do drible e não do resultado. Tanto fazia ganhar ou perder, desde que se fizesse uma jogada excepcional, desse um passe perfeito, cobrasse um pênalti ou uma falta com categoria.

“Mas, Tio” - diziam os mais espertos – “se a gente fizer tudo isso a gente ganha o jogo!” Ele concordava enquanto batia um balãozinho trocando de pernas. Depois quicava a bola até os joelhos, mandava ela pro peito, arqueava o tronco e descia ela na nuca, abaixava e subia rapidamente e a bola estava na cabeça como a coroa viva de um rei equilibrista. Sentava assim, meditando, e com ares de filósofo dizia que ganhar ou perder é coisa de gente comum, o que importava era fazer arte.

Mas havia dias tristes, sem arte, sem magia e com muita competição. Nesses dias nossas canelas arroxeavam e os joelhos sangravam. No entanto, acredito que quem mais sofria era o tio João que estava bêbado em algum bar e não aparecia no campinho.

Dava pena vê-lo daquele jeito e acredito que ele também tinha pena de si, pois evitava nos encarar naqueles momentos. Quando era assim a gente até brincava com os meninos de outros bairros, nos campinhos deles, mas era como se faltasse alguém importante para apreciar nossas jogadas. De qualquer maneira jogávamos, mas não havia aquela felicidade que a gente se acostumou a ver na bola branca dos olhos negros de tio João.

Tinha vez que o campinho estava seco, o tempo frio. Outro dia estava chovendo, o campo úmido. Teve dias em que morreu algum avô ou avó de um de nós e o campo ficava triste, mas era só ouvir o som da bola quicando no chão para aparecermos de todos os lados, como um enxame de abelhas sobre a relva. Então quando a bola rolava de um pé para outro pé era como se dividíssemos o problema de um de nós por todos nós. Depois do jogo já não éramos nós mesmos. Éramos algo mais.

O tempo passou e nós crescemos. Cresceu também a necessidade de competir, de ganhar. Tio João foi deixado de lado. Trocamos a rua e o campinho pela fábrica e o comércio, trocamos tio João por um encarregado ou patrão. Vez por outra alguém passava na casa dele pra ver como ele estava, pra tomar um café. Não era difícil encontra-lo triste, sozinho. Não tinha família. Os poucos amigos eram os do serviço e nós. Aqueles amigos sumiram depois que ele se aposentou e nós fomos sumindo aos poucos que nem uma bola rolando vagarosamente para o meio da rua.

Os melhores entre nós levavam os filhos para ele conhecer. Nessas ocasiões ele ficava tão alegre que ia até o quarto e trazia uma bola antiga e murcha e dava de presente. Se a criança recebesse de boa vontade, ele sorria até às lágrimas.

Eu, que nunca fui craque e sou o mais tímido de todos, apareci por lá certo dia. Bati palmas e ele saiu curioso. Veio me receber de braços abertos e andava coxeando como Mané Garrincha. Me convidou a adentrar a varanda e eu entrei. Antes passei pelo gramadinho verde em frente a casa. Pediu que eu me sentasse em uma cadeira de área e foi buscar a garrafa de café. Demorou um pouco e em seguida retornou com a garrafa, dois copos e um par de luvas saindo dos bolsos. Encheu os copos e retirou as luvas do bolso e me entregou. Fiquei olhando, cheirando as luvas enquanto ele bebia o café prazerosamente.

Enquanto olhava para as luvas velhas e encardidas fui invadido por recordações: as defesas, os pênaltis defendidos, os saltos ensaiados, os tombos, as faltas cometidas por mim e por outros dentro da área. Tudo isso chegou como uma bolada na boca do estômago. Para disfarçar as lágrimas tomei um gole do café, enxuguei o nariz com as costas das mãos e me desculpei por não ter sido um goleiro melhor. Tio João balançou a cabeça para trás e disse sorrindo para eu não me envergonhar porque eu tinha participado daquela alegria e “toda alegria”, ele afirmou, “é eterna”.

Conversamos bastante sobre os bons velhos tempos até que o meu telefone tocou. Era minha mulher pedindo para que eu buscasse nosso filho na escola. Expliquei isso a ele. Ele entendeu. Antes de sair me disse que tinha outro presente. Pensei logo em uma bola murcha, no entanto eu estava errado. Dois minutos depois tio João apareceu na soleira da porta batendo balãozinho, alternando a bola de um pé para o outro e, num gesto rápido, passou o pé por sobre a bola e deu um toque ligeiro nela com o calcanhar. A bola voou em direção à garrafa, mas eu voei primeiro e a peguei no ar.

Tio João bateu palmas nos joelhos e riu satisfeito. Depois, limpou o canto dos olhos e esticou o dedão polegar para mim. Eu me aproximei e o abracei com um braço apenas. O outro braço segurava a bola junto ao peito esquerdo. Ficamos assim por uns segundos, nos olhando profundamente como um artilheiro que acertou o último pênalti e espera que o goleiro do seu time defenda a última cobrança do time adversário. Era uma mirada de confiança recíproca.

Com acenos de cabeça nos despedimos. Ele me acompanhou até o portão e me disse com voz clara e certeira como uma bela cobrança de falta: “Ensine isso ao seu filho”. Quando eu perguntei o que ele quis dizer, ele falou: “Alegria e respeito”. Eu balancei a cabeça e saí devagar, leve como uma bola de futebol.

make
Enviado por make em 20/02/2022
Reeditado em 24/02/2022
Código do texto: T7456220
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