Convergências apimentadas

A conversa fluía leve e tranquila. Adorei a sua voz e forma com que desviava suavemente a madeixa que insistia em cobrir seu olho direito. Sorríamos. Olhares começavam a ganhar profundidade. Era notória a sua aproximação e inclinação em direção à mesa. Passei a fazer o mesmo... e falávamos mais baixo, quase sussurrando. O mundo parecia inerte quanto silencioso à nossa volta.

Não lembro de quem colocou a questão em cima da mesa. Como o roteirista de nossa vida desenharia um relacionamento ideal? Voltamos a encostar-nos na cadeira, conversas internas eram agora travadas. O garçom recolheu os pratos e perguntou se queríamos sobremesa. Trouxe a carta. Chegamos à conclusão que não iríamos comer, cada um, uma sobremesa inteira. Era melhor escolher uma de comum acordo. Ela leu cheesecake de frutos vermelhos com um olhar de “é este!”. E eu fiel à tradicional mousse de chocolate. Um impasse! O primeiro, pois tanto os pratos como as bebidas tinham sido escolha particular e de forma prática e rápida. As temáticas até ali também não tinham oferecido qualquer controvérsia, só identificações.

Fiz uma proposta: ler a situação pela ótica do roteirista! Cheesecake hoje? Por que não mousse de chocolate? Cheesecake nos meses pares e mousse nos ímpares? Escrevemos um papel com cada nome, amassamos, misturamos e tiramos um...

Propus tentarmos ser mais ousados, não facilitar a vida do roteirista. Nem uma nem outra... sempre escolhermos algo diferente, tentar nunca repetir. Ela olhou-me girando um pouco a cabeça e o processo de aproximação da mesa recomeçou. Nem uma nem outra! Aprovado... mas teríamos que procurar outro lugar com a determinação de que tivesse “a sobremesa”. Decisão unânime pedimos a conta e demos início à busca. Começaram a surgir perguntas... Viver juntos ou em casas separadas? Dormir cedo e ver o nascer do sol ou a noite é uma criança? Viajar com os filhos ou escapadinhas sempre a dois? Adormecer cada um do lado da cama ou de conchinha? Praia ou campo? Casa grande ou prática? Peixe ou carne? As convergências foram nascendo com naturalidade e quando não as havia acordos eram facilmente costurados. Nossos olhos brilharam ao ler ao mesmo tempo “crumble de maçã e canela”, descobrimos que tivemos avós especialistas nessa sobremesa. Perfeito! A conversa evoluiu e tudo caminhava com pleno entendimento e identificação. Muito divertido! Concordamos que três crumbles bastavam para saciar nossa gula e saudade. Rimos da quantidade de canela que usamos e abusamos. E fomos enveredando pelos caminhos verdejantes dos temperos. Até nos depararmos com um sinal vermelho: a pimenta! Ela não tolerava, eu adoro! Não dá para colocar a pimenta no final, no prato? Não! Faz parte da base do sabor, nasce com o prato. Um dia com pimenta e outro sem? Não! Ela mata todos os sabores e deixa minha boca dormente, para mim é totalmente supérflua.

Era tarde, lembramos que amanhã acordar cedo era imperioso. Surgiu uma certa pressa no ar, levantei e fui pagar a conta. Uma imagem de cavalheirismo final. Trocamos um beijo rápido e prometemos nos voltar a encontrar. Qual era mesmo o nome dela?

Fernando Antunes
Enviado por Fernando Antunes em 24/02/2022
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