Dia de guerra com os amigos

-Chega por hoje.

Fred fechou o notebook e encerrou, por ora, o esboço do conto que havia começado a cerca de quatro horas antes. Talvez pelo fato de há bastante tempo não ter parado para escrever, sentiu um cansaço mental descomunal. A atmosfera abafada dentro do seu quarto contribuiu para uma sensação de vertigem que o fez deitar na cama para ver se conseguiria relaxar um pouco. Não estava funcionando. Levantou-se, caminhou até a cozinha para beber um copo de água gelada e resolveu olhar no celular que estava carregando se sua irmã o havia respondido.

Haviam combinado de jogar umas partidas de War com mais alguns amigos no apartamento dela. Denise morava com a sua namorada Laura, que estava grávida, em um prédio de classe média na zona sul. Estava quase no horário no qual Fred resolvera sair para a visita; tomou um banho e desceu a rua para pegar o ônibus. Como Denise não havia visualizado a mensagem, decidiu ligar.

- Oi! Peguei o ônibus agora. Daqui uns quinze minutos estou aí.

- Ok. Estou terminando de revisar alguns processos. Quando chegar, chama no interfone que te pego aí embaixo.

Denise estava trabalhando em Home Office devido à pandemia. Era empregada de um escritório de advocacia. Havia passado na primeira prova da OAB na semana anterior depois de duas tentativas mal sucedidas, o que foi muito comemorado por ela e seus familiares, já que era um grande peso que vinha carregando, como Fred pôde perceber em uma conversa entre ambos na véspera da prova.

Fred desceu do coletivo e percebeu uma gota cair sobre a lente dos seus óculos escuros; o tempo estava virando. Era impressionante como a chuva causava uma ótima sensação sobre ele. Pensou na possibilidade de talvez ter nascido em um dia chuvoso; quem sabe uma hora dessas perguntasse para sua mãe.

Chegou à residência da irmã e da cunhada e tocou o interfone, apartamento 403.

- Je suis arrivé.

- Já estou descendo.

Os irmãos cumprimentaram-se e logo em seguida entraram no elevador.

- O Daniel e a Patrícia já chegaram?

- Ainda não. Ele me disse que chegariam lá pelas oito.

Daniel era primo deles. Era o mais velho de três irmãos, todos mais novos que Denise e Fred. Morava com a sua namorada perto dali, em um dos bairros mais boêmios da cidade. Na festa de revelação do sexo do bebê de Denise e Laura, já passados uns três meses desde a data desse encontro entre os amigos, Daniel e Patrícia fizeram a alegria do local; antes das mães e dos convidados saberem se era menino ou menina que estaria por vir, a dupla se fantasiou de bebês e entraram seminus no salão de festas vestindo cada um apenas uma fralda, o que levou os convidados ao delírio e às gargalhadas. A surpresa era parte de uma apresentação na qual os dois dançaram alegremente em companhia de uma Drag Queen contratada por um amigo das anfitriãs. Eram estas cinco pessoas que, logo mais, travariam uma guerra no tabuleiro.

Ao adentrarem no apartamento, Denise voltou aos seus afazeres em frente ao computador que estava em cima da mesa que ficava ao lado da única janela da sala de estar. Fred sentou-se no sofá já preparado para o que estaria por vir em questão de segundos: um ataque frenético de lambidas por todo o seu rosto pelas duas cachorrinhas do casal. E não aconteceu outra coisa; foi só ouvir a voz dele que as cachorras vieram voando do quarto onde se encontravam e, de um pulo só, disputaram entre elas quem depositava mais saliva canina na boca e nas buchechas de Fred. Não tinha importância; era possível que as cadelas fossem mais limpas que muitas bocas que ele já beijou na vida, além de adorar as pequenas criaturas de quatro patas que ali estavam fazendo a maior algazarra no seu colo.

Laura apareceu logo em seguida após sair do banho.

- Pro chão, meninas! Chega de folia. Deixem o homem em paz.

Foi quase a mesma coisa que dizer "lambem-no até o fim de suas vidas". "Deixe elas", Fred falou a sua cunhada para logo depois perguntar como Laura estava. O colóquio prosseguiu por um minuto ou dois até que Denise proferiu:

- Pronto! Já podemos beber.

Ficou combinado que os irmãos iriam juntos ao mercado para comprarem as cervejas e algumas coisas para comerem no café da tarde. Enquanto isso, Laura faria uma lista de compras e mandaria para o celular de Fred quando eles estivessem a caminho do mercado.

***

O carrinho de compras já estava com quase todas as mercadorias, faltando apenas as cervejas e os hortifrútis. Denise ficou responsável pelas frutas enquanto Fred pegava a bebida que serviria de combustível para a jogatina de logo mais. Fred apareceu com dez latas de cerveja e depositou-as no carrinho. Ele percebeu que Denise já tinha ido umas vinte vezes pesar as frutas e as verduras, dizendo a ela que era um desperdício de tempo ficar nesse vaivém incessante, que era melhor ensacar tudo de uma só vez e entrar na fila também apenas uma vez . Denise fitou-o com um olhar sarcástico-cômico e proferiu:

-Deixa comigo. Sabe que eu sou anticapitalista, né?!

Fred, a princípio, não entendeu a colocação de sua irmã; pensou em como ela poderia ser anticapitalista fazendo o rapaz da balança ver a cara dela de minuto em minuto. Fred foi ajudá-la a pegar algumas frutas, no que ela retorquiu:

- Tu fica aí paradinho e deixa isso pra mim.

Com o carrinho completo com os produtos que decidiram levar, dirigiram-se ao caixa.

- Bom dia, disse a operadora que registrava os preços.

Os irmãos retribuíram o cumprimento da funcionária e começaram a despejar as sacolas sobre o balcão. Terminado o procedimento, apareceu no monitor o valor total das compras, $163. Fred fez um comentário de que valia muito a pena ir naquele mercado, visto que o valor estava baixo pela quantidade de sacolas que estavam levando. Após saírem do estabelecimento comercial, Fred voltou ao assunto da economia.

- Vou começar a comprar nesse mercado, olha só todas essas sacolas que estamos levando.

- A menos que você seja anticapitalista também...

Denise exprimiu essa fala dando uma leve risada. Fred entendeu tudo e foram em direção ao apartamento conversando sobre o que é considerado certo e errado nesse sociedade capitalista de merda.

***

- Chegamos! Vamos comer que eu estou louco de fome.

Fred não tinha almoçado e já estava sem qualquer tipo de cerimônia; tirou os pães e o queijo da sacola, sentou-se à mesa e abriu tanto um quanto o outro com as mãos, espalhando farelo por tudo quanto é canto. Laura, que estava vindo da cozinha, olhou para a cena e sem pensar duas vezes, disse:

- Ah não! Aqui na minha casa tu não vai comer que nem um animal. Pode parar com isso.

Fred olhou para a sua cunhada e começou a rir.

- Eu não estou rindo, guri.

Laura estava incrédula com a falta de modos de Fred. Ela voltou à cozinha e trouxe facas e pratos.

- Vou te ensinar a ser gente.

Fred não disse nada e continuou comendo, afinal, Laura estava em sua própria casa, além do fato de Fred gostar bastante da sua cunhada e saber que aquilo era um pequeno chilique de uma pessoa extremamente caprichosa e que o seu sentimento de carinho era recíproco da parte dela. Tudo era amor ali.

***

O interfone tocou; eram os dois últimos integrantes que estavam faltando. A chegada foi calorosa, feita com toda alegria e espontaneidade típicos da dupla, como em todo lugar no qual eles chegavam. Dadas as boas-vindas ao casal, Denise foi logo colocando o tabuleiro sobre a mesa e os jogadores assentando-se cada um em seu respectivo lugar; a batalha iria começar.

As peças de cores diferentes foram distribuídas entre os oponentes, cada uma representando um exército. A partida começou equilibrada; os jogadores estavam comedidos em atacar, o que era uma boa estratégia. Quem sabe os ânimos tornar-se-iam mais bélicos depois que a primeira cerveja aparecesse. Denise, após perder alguns territórios nos dados, resolveu fazer as honras e foi ao freezer pegar a primeira; trouxe uma sem álcool para Laura; a saúde da criança em primeiro lugar.

- Puta merda!

Daniel não estava com muita sorte e em questões de poucos minutos seu exército vermelho estava se dizimando. Adeus, Bolcheviques!

Fred estava ganhando cada vez mais terreno, seu exército estava avançando entre as fronteiras. Os dados estavam o ajudando e, claro, um pouco de ousadia não estava lhe fazendo mal.

O jogo perdurou por cerca de duas horas. A supremacia de Fred no jogo estava sendo mantida.

Quase acabando a bebida, que aflorou um pouco o ânimo dos competidores em certo momento, Fred deu a cartada final e alcançou o seu objetivo que era conquistar a Europa, a América do Sul e outro continente a sua escolha, que acabou sendo a Ásia. Dando um último gole na cerveja, em um gesto e pose de conquistador do mundo, proferiu uma frase em alusão a Napoleão sobre o merecimento dos vencedores e a necessidade dos perdedores em beber cerveja após as batalhas, o que deixou sua cunhada estérica, visto que, além de caprichosa, ela era bastante competitiva.

Encerrada a brincadeira, Fred pegou o celular para conferir se tinha alguma mensagem de sua namorada que havia ficado em casa, e viu uma notícia no seu telefone informando que a Rússia acabava de bombardear uma cidade da Ucrânia, levando muitos civis à óbito, o que o fez lamentar sobre os bons e velhos tempos em que a briga entre russos e ucranianos era apenas pela reivindicação da nacionalidade de Nikolai Gógol.

Igor Grillo
Enviado por Igor Grillo em 04/03/2022
Reeditado em 04/03/2022
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