O buraco

 

    Vicente, um cidadão comum, está na Avenida Edgard Romero, Madureira, já próximo ao ponto que irá descer. O coletivo lotado impede praticamente seus movimentos, está ligeiramente atrasado para o serviço, é gerente em um posto de gasolina próximo a estação de trem. Quando desce, sua mochila escapole de suas mãos expondo sua marmita que continha arroz, feijão e um ovo estrelado. Os passageiros do coletivo começam a rir do infortúnio de Vicente, que se levanta, recolhe a marmita aberta e vazia e a recoloca na mochila seguindo após isso, em direção ao trabalho. Sabe pelo acontecido, que o dia não será fácil. Vicente é mulato, alto, porte atlético, 44 anos e pai de um filho, o qual pouco vê. Separado, atualmente tem se relacionado com a esposa de um traficante de um dos morros vizinhos a seu trabalho. Assim que chega ao serviço, Vicente é avisado por Reinaldo, um dos frentistas do posto:

- Pessoal do movimento esteve aqui, parece que mataram Isaura e estão atrás de você.

Vicente se entristece pois realmente Isaura era a mulher com a qual estava se relacionando. Segundo relatos dela, apanhava muito do marido, um soldado de confiança do chefe da boca. Vicente temia por sua segurança, mas, não se desesperou. A perda de Isaura o deixou bastante abatido. Ao anoitecer, ainda no trabalho, quando procura um lanche para comer após ter passado o dia em jejum, duas motos se aproximam. Numa delas havia um “garupa” armado de fuzil. Vicente é abordado:

- E aí velho, vem com a gente.

- Tem outro jeito?

- Não, melhor subir, falar pouco e aceitar o que o tribunal decidir.

- Sem problema.

Vicente era extremamente frio, paraense, ex-fuzileiro, lutador de rua por apostas e conhecedor de certas técnicas de artes marciais. Havia treinado alguma coisa ao longo da vida, como capoeira e principalmente aikido, mas sem concluir o curso em nenhuma delas.

Leôncio, chefe da boca e dono do morro, aguarda a chegada de Vicente. Por diversas vezes Leôncio abastecera seus veículos no posto que Vicente gerenciava. Conheciam-se bem, além de um simples cumprimento. As vezes conversavam, principalmente sobre futebol pois ambos torciam para o mesmo time.

- Diga lá Vicente, meu camarada. Pô, comendo a mulher dos outros. Sabe que aqui existe uma lei aqui pra isso, mijou fora do penico, paga com a vida. Mas, em consideração ao amigo, gostaria que me explicasse o porque dessa besteira.

- Leôncio, com todo respeito, sei que se falar, posso não ser ouvido. Se falar, gostaria de dar minha versão por completo e citar uma provável testemunha.

O morro está cheio, diversos traficantes armados de fuzis e pistolas o único mediador que adia o justiçamento a Vicente é Leôncio, que está diante de um crime imperdoável para as leis do morro, ter uma de suas mulheres usadas por alguém de fora da comunidade. Leôncio pondera:

- Vou deixar você falar Vicente, a princípio você está condenado a morrer no micro-ondas após ter a vara decepada. Porém, ouvirei sua história e sua provável testemunha. Pois, duvido que alguém aqui do morro venha a ficar do seu lado. Então, fale:

- Bem, eu estava me relacionando com Isaura há cerca de três meses, quando um dia ela me disse: 

-  Meu marido, Zelão, me trata como uma vadia , sempre me bate. Embora seja homem de confiança de Leôncio, ele está insatisfeito, não se sente reconhecido e ganha pouco pelo que faz. Justamente por ser um homem de confiança do chefe, passou a desviar parte do armamento daqui para a facção rival, ele também repassa informações de tudo que acontece aqui no morro.

Eu ao ouvir isso disse a Isaura para largar Zelão e não se meter nesse assunto de desvio, pedia a ela para deixar o morro e ir embora comigo.

- Já chega, já ouvi o bastante. Nunca chegou nenhum carregamento aqui faltando arma alguma, além disso, você disse que há uma testemunha. Quem é essa pessoa?

- Na verdade, minha testemunha desconhece essa história. Mas, sabe o lugar onde Zelão guarda as armas desviadas. Deve haver ainda alguma por lá.

- Quem é?

- Ismar, irmão de Isaura, que não é soldado seu. Tem problemas mentais. Peça a ele para nos levar ao “buraco”.

Leôncio manda buscar o garoto na casa de seus pais e, quando chega, diz:

- Nos leve ao buraco.

O garoto os leva até ao casebre onde mora com seus pais. Ao chegar dirige-se aos fundos, retira umas madeiras atrás do banheiro externo onde com lanternas, os homens de Leôncio vislumbram “o buraco”. Nele há um saco de ráfia que puxam para cima. Ao abri-lo encontram um fuzil desmontado e quatro pistolas, além de três pacotes fechados de drogas.

- É, gerente, parece que você tem razão. Não lembrava dessas armas, nem desse bagulho!?  Mas sua história confere com o que disse. Ainda assim, você mexeu com um mulher da comunidade, por isso, ela está morta.

- Mas, então Leôncio. Gostaria de poder me defender na mão contra meu acusador, já que ele batia na mulher e estava desviando armas e drogas de sua propriedade.

- Não sem antes levar uma surra por ter pego uma mulher da comunidade, sem meu consentimento.

- Sem problema.

Vicente leva trinta borrachadas nas costas, pernas e lateral do tronco em cima das costelas, aplicadas por um capanga de Leôncio. O instrumento utilizado para a surra é feito de filetes de tiras de pneus velhos, com o diâmetro de uma polegada. Sua pele sangra bastante e diversos hematomas se formam em seu dorso.

- Agora vocês podem lutar.

Zelão era um negro, também alto e forte, habilidoso com o fuzil e mais perigoso ainda com arma branca, a qual utilizava para matar seus desafetos. É riscado um circulo no chão e um holofote ilumina o palco da luta. Zelão inicia o combate dando um soco na boca do estômago de Vicente, além de um tapa com as costas da mão em seu rosto, tais agressões levam Vicente ao chão. Caído, vê Zelão ameaçar saltar sobre o seu corpo com a faca em punho para finalizar a luta, quando então, se esquiva rapidamente após erguer-se do chão numa ponte de capoeira e realizar a  virada da mesma, colocando-se novamente de pé e fora do ataque do oponente. Zelão, troca a faca de mãos num gesto rápido, empunhando agora com a direita, para novamente atacá-lo. Nesse momento, Vicente, reunindo suas últimas forças, aplica no oponente um "Kotegaeshi", tomando-lhe a faca. Antes que Zelão levante, o degola num golpe ligeiro. O sangue espirra a meio metro de altura, Zelão perde as forças desfalecendo. Nesse momento todas as armas do morro estão apontadas para Vicente, aguardando um aceno de Leôncio para atirar e ele se pronuncia:

- Vicente, já tinham me dito que você era um puta lutador. Mas, seu jeitão calado pra mim , nunca confirmou isso. Lutou na moral, agora levanta, vista sua camisa e nunca mais apareça por aqui, sequer retorne ao posto, pegue lá hoje somente seus pertences.

No dia seguinte, Vicente triste, mas aliviado, está na Rodoviária Novo Rio, com sua mochila, a marmita que Isaura lhe presenteou e um bilhete somente de ida para Belém do Pará.

 

Rio de Janeiro, 29.03.22

 

Nota:

Virada de ponte: movimento no qual o capoeirista após fazer a ponte, com o abdômen para cima, ergue o tronco com as mãos no solo, e num esforço com os pés dá uma cambalhota voltando a ficar de pé.

 

Kotegaeshi: No Aikido, é uma chave de pulso, uma fechadura de articulação que afeta principalmente a articulação do punho e, em alguns casos, as articulações radioulnares por meio da rotação da mão. Uma chave de pulso que é normalmente aplicada agarrando a mão do oponente e dobrando-a e / ou girando. A dor, muito intensa é capaz de imobilizar o agressor.

 

Colaboração: Renato B. Macedo

Revisão: J. A. Burlamaqui