Escárnio

Os problemas começaram quando ela, aos dezesseis anos, se recusou a tirar o título de eleitora. Faria isso apenas quando fosse obrigada, aos dezoito.

Dizia também que jamais votaria, em quem quer que fosse.

O tio estava em campanha para vereador e vinha se sujeitando a todas as presepadas que só um político profissional é capaz, e naquele momento, não contar com o apoio irrestrito da família era para ele uma derrota e um insulto.

Muito antes das questões relativas à sustentabilidade virem à tona, impulsionadas pelas catástrofes ambientais agora visíveis até pelos mais desprezíveis defensores de falsos conceitos de desenvolvimento, que envolvem lucro sujo e imediato, ela criticava o descaso por consequências de médio e longo prazo para que se mantenha a possibilidade de vida humana no planeta.

Questionava também se a vida humana no planeta de fato valia a pena.

Sabendo que a máquina estatal é um moedor de sonhos populares e sucumbindo às vaidades do poder e às suas ambições materiais, o tio finalmente foi eleito vereador.

Temia o repúdio eterno da sobrinha, mas aquele propósito era um projeto de vida que para ele visava a garantia de um futuro sem preocupações materiais, uma aposentadoria precoce e o resto de sua vida contabilizando dividendos que fariam a preocupação com os temidos boletos da vida se transformarem numa lembrança pálida e distante.

Quando viu seu adesivo de propaganda eleitoral com sua cara retrabalhado pela sobrinha fazendo de sua imagem um meme para o avacalhar diante de todos, e fazendo dele um motivo de chacota para a família, soube como nunca que seu caminho não tinha volta.

O escárnio por parte da família ainda era discreto e corria às suas costas, exceto por parte da sobrinha, cuja opinião sobre políticos em geral ele conhecia bem.

Os outros parentes ainda sustentavam resquícios de reconhecimento pelos seus esforços para atingir aquele objetivo, que uma vez atingido, se revelou ser menos relevante, sobretudo do ponto de vista ético.

Agora eleito e cumprindo protocolos que garantiam seu salário vantajoso, podia desfrutar acima de tudo do esquecimento de seu eleitorado, que desesperado a cada dia na luta pela sobrevivência, não cobrava por promessas eleitorais feitas enquanto ele cinicamente comia pastel na quebrada dizendo que a vida do povo iria melhorar.

Esse distanciamento vantajoso era contrastado com o vazio familiar antes anestesiado pela sede de poder que o acompanhava ao longo da vida e que durou até pouco depois da eleição.

A sobrinha era o pivô dessa sua nova inquietude existencial, já que era impossível fugir dos noticiários que, mesmo mostrando de forma parcial e editada toda a vergonha que representa a máquina estatal, ainda assim apunhalava agora a sua consciência, que passou a atormentá-lo cada vez mais à medida em que o tão desejado objetivo foi se mostrando oco e opaco diante de um cotidiano permeado por relações corruptas que invariavelmente se sobrepunham a qualquer fagulha de boas intenções inerentes à sua essência humana.

O carro luxuoso, a dispensa cheia de importados e o terno cortado sob medida eram agora tão cotidianos, que a tão sonhada aposentadoria precoce e sem problemas financeiros logo se tornaram uma confusa perspectiva, uma névoa sobre qual seria seu legado deixado quando sua finitude natural começasse a se aproximar e pesar muito mais que seu poderio financeiro.

A sobrinha ingressou na faculdade, mudou-se para o interior e seu distanciamento com o tio era apenas uma molécula de desprezo se comparada ao sentimento que ela tinha pela classe política como um todo.

Fernando Barreto de Souza
Enviado por Fernando Barreto de Souza em 17/04/2022
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