Cadê a esperança?

COVID-19, Sintomas de.

A primeira vez que pesquisei “Sintomas Covid-19” no Google foi numa tarde de fevereiro, ensolarada pelo que me lembro. A pandemia mundial só seria declarada no mês seguinte, nenhum sinal do vírus em solo brasileiro, mas na minha cabeça a possibilidade de infecção já habitava as ligações entre meus neurônios cansados.

Meus músculos tinham abandonado qualquer sinal de força, minha cabeça gritava em algum idioma falado pelos solos de guitarra das bandas de rock heavy metal e meu coração, a parte mais interior do ser humano por mim constituído, afogando-se no desespero, me trouxe a ideia de procurar respostas na internet.

Os resultados da pesquisa foram miúdos, como a mente de um eleitor burramente fiel a pensamentos errôneos, como um avião decolando visto do chão, como um ácaro que acaricia humanos esgotados de noite... Naquele ponto da história, da evolução desses acontecimentos que vêm assolando a população do planeta terra, não se sabia muito sobre os sintomas trazidos pelo bichinho - não que se compreenda tanto agora, mas se sabe muito mais.

Eu ainda não sei o que me tirou a força naqueles dias de fevereiro. Na verdade, eu nunca vou saber. Nem se eu quisesse ou não. A princípio, apenas continuei com a vida normal: fiquei mais reclusa em casa, um erro homérico, fiz festa de aniversário, fui para o outro lado da cidade pousar na casa de uma amiga, encontrei uns outros colegas, comprei passagens de ida e vinda, fui-me indo.

Mas, infelizmente, eu me vi fazendo coro com um belo meme da internet criado nesses tempos esquisitos, que diz: “Segundo minhas paranoias eu já peguei covid umas trinta vezes”. Cada vez que a minha rinite atacava e eu espirrava, repensava a minha vida. Cada dor de cabeça, um medo de morrer. E se me dava caganeira… já pensava em redigir um testamento e estabelecer com que livro cada amigo iria ficar, afinal, tudo que eu tenho em bens de valor são livros.

Entretanto, foram só alarmes falsos - até porque eu já fui testada. Depois de uma semana gritando para os meus neurônios a sua existência miserável, quando minhas costas não pararam de doer ferrenhamente, eu decidi ir para o hospital. Esse é um lugar bem complicado de ser visitado em tempos pandêmicos, mas dada a conjuntura de minhas juntas, fui. Me examinaram, não acharam nada, fizeram o teste de Covid em mim - uma sensação maravilhosa de toque no cérebro através de lugares que eu nem imaginava que existiam no meu nariz - que não deu nada.

Fiz outra vez também: fui para o hospital por algum outro motivo que também não tinha relação com os agora tão bem conhecidos sintomas do coronavírus. O engraçado é passar pelos dias de espera do resultado, nos quais você precisa agir como um infectado. Fiquei em lockdown no meu quarto, usei máscara dentro de casa para visitar o banheiro e jogava álcool em tudo que eu tocava - foi uma espécie de telecurso 2000 de quarentena. E felizmente o resultado do teste também foi negativo.

QUARENTENA, Começo da.

Ela estourou em tempos diferentes para cada pessoa. Tudo depende da nacionalidade, latitude/longitude e percepção da realidade, mas para mim foi no dia quinze de março. Eu lembro disso porque era aniversário da minha prima e eu esqueci de dar os parabéns. Eu lembro disso porque tinha passagem comprada para voltar a cidade do Rio de Janeiro. E eu lembro disso porque era domingo e minha igreja suspendeu o culto.

As aulas foram adiadas por uma quinzena. Uma pequena eternidade para uma garota-ansiedade, que estava ansiosa por rever os amigos, bandejar, conviver na república, ver as paisagens de tirar o fôlego da Rodovia Presidente Dutra... Pensei que seriam só quinze dias, mas esses dias fizeram amor como coelhos no cio e se tornaram mais de quatrocentos e trinta e oito. Quatrocentos, mais trinta, mais oito, mais sei lá quantos.

A compra do mercado foi maior, aproveitamos pra já fazer um estoque, recheado de alimentos básicos não-perecíveis, pois o clima de fim do mundo era evidente: nunca se teve tanta farinha e macarrão na minha casa, nunca se teve tanto temor do futuro, nunca se teve tantas dúvidas, até quando ficaremos aqui, quando vou poder trabalhar, e se a gente pegar...

As incertezas pegaram o mundo todo, e elas agarraram os autônomos com ainda mais força. Afinal, esse tipo de gente tem um fraco pelo duvidoso. E quando a figura do autônomo se junta à da mãe solteira, o desespero é bem maior! O medo debaixo desse teto foi grande, mas a sorte foi que a minha mãe é prudente com dinheiro.

Todas as contas fixas e não-fixas foram minuciosamente revisadas. Tudo que era dispensável foi cortado, tudo que era indispensável foi reduzido. O principal corte foi o aluguel do Rio, e assim meu cantinho carioca foi-se embora, com toda razão do mundo. Virei uma sem-teto na Cidade Maravilhosa. Por conta disso, tive que voltar a morar com minha mãe em São Paulo por tempo indeterminado. E o custo de se proteger do vírus também era algo indeterminado.

A lei de oferta e demanda foi didaticamente exemplificada num único produto: o álcool em gel. Eles viraram objeto de uma grande caça nacional, foi impossível de achar e tudo bem, já seria impossível mesmo comprar por aqueles preços absurdos.

Poucos sabiam usar máscara e nos primeiros tempos seu uso ainda era facultativo. Um dia entrei na padaria de rosto pelado e um senhor mascarado me perguntou “Cadê a máscara?”, respondi qualquer besteira e morri de vergonha. Hoje não tem mais nada facultativo. Hoje me sinto nua sem máscara e me dá um desespero ver aglomeração de rostos pelados nas séries de tv. Hoje ninguém entra em padaria nenhuma sem ela. Hoje ainda tem gente que a usa sem cobrir o nariz. Hoje tem gente que ainda tira ela no meio da rua. Hoje ainda tem gente que não gosta delas. É desesperador, é assustador.

Minhas férias, já longas, foram aumentadas por tempo não definido. Minha mãe ganhou suas primeiras férias forçadas e a mais longa de sua vida. Era o início de um tempo esquisito, igualmente gostoso e fatalmente tenebroso. Com o tempo de sobra, nosso sofá segurou nosso peso por mais tempo, os guarda-roupas ganharam sua melhor arrumação em anos e o forno triplicou sua carga horária.

PESO, Ganho de.

Aprendi a fazer pão, biscoito amanteigado e bolos diferentes. Fiz todos mais de uma vez e comi minhas obras com gosto. Cozinhei o estoque de macarrão e comi com paixão, algumas vezes por semana. A tristeza da incerteza me acionou o gatilho do se alimentar para esquecer os problemas.

Comer era um passatempo. Comer era uma fuga. Comer era um privilégio. Logo eu, que sempre fui obesa, engordei. Um pleonasmo desgraçado para se viver durante um momento histórico desses. Eu estava mais parada do que nunca.

SEDENTARISMO, Perda do.

A tristeza aguda que eu sentia ao me olhar no espelho me deu forças necessárias para alterar os maus hábitos que eu vinha cultivando no meu dia a dia. Através da guerra instaurada contra minha imagem no espelho, decidi mudar de meus costumes doentios e minha rotina preguiçosa, escrava dos prazeres que a comida me dava.

Meus ouvidos captaram a sentença poderosa de uma mulher sábia: “O corpo também é espiritual”. Depois disso, quis, precisei e busquei mudar, e para isso procurei algum tipo de atividade que não causasse tanta dor logo de cara e que me permitisse seguir um caminho diferente, cuidando desse conjunto de órgãos que carregam minha alma e continuarão carregando enquanto eu estiver aqui.

Comecei a pular corda. Achei uma corda velha, cansada de ser ignorada, e prometi não mais abandoná-la. No primeiro dia, dei o play em uma música considerada por mim animada, 2Cellos melhorando algumas músicas de rock, e realizei a incrível marca de trinta e sete pulos consecutivos. Um marco! Trinta, mais sete, mais nada.

Pulei corda durante três meses sem pular nenhum dia: noventa dias consecutivos na luta. Perdi os quilos que tinham invadido meu corpo, esqueci o jeito sedentário de existir dia após dia - e cheguei até a dar duzentos pulos seguidos. Duzentos!

PAI, Ausência de.

Não o vi muito nesses tempos. Não o vejo de verdade a mais tempo ainda. Talvez ele tenha entrado em isolamento de mim muito antes, uns dez anos antes. Nossos encontros sempre foram raros, como qualquer encontro durante uma pandemia, um lockdown.

Também sempre foram difíceis. Acho que colocamos máscaras muito antes. Máscaras invisíveis. Não essas de pano ou de papel, apesar de também dificultarem a comunicação e cobrirem boa parte do rosto - cobrirem boa parte de nós... Infelizmente começamos esse isolamento social muito antes da ameaça do vírus que, como qualquer outra, é invisível.

N, Entretenimento é com.

Em algum momento do espaço-tempo de 2019, quando os transportes públicos estavam tão lotados como agora, a companhia telefônica ofereceu um plano diferente aqui pra casa: ficaria mais barato do que o atual e incluiria tv por assinatura com uns dez canais diferentes. Era mais barato. Então... Por que não?

Essa decisão mudou completamente o início do lockdown aqui em casa, já que essa empresa disponibilizou todos os canais da tv a cabo por um mês inteiro. “Que bondade!”, passamos um bom tempo assistindo aqueles programas americanos, como “Quilos mortais” e alguns outros. Muita coisa repetida… nossa! Na boa, quem ainda paga essa merda? Num mundo em que tudo que é bom dura pouco, a bonança tem perna curta.

Nesses primeiros meses, o tempo sobrava. Então tive o privilégio de maratonar algumas séries com minha mãe: algo inédito para nós naquela intensidade e assiduidade. E foi muito, mas muito bom mesmo! Nessas maratonas nos divertimos juntas, vendo a representação de outras vidas tão iguais e tão diferentes das nossas: a humanidade de um ser humano sendo humano. Um sapato que cabe em todos nós e que tem suas pedrinhas dentro - claro!

Do outro lado desse universo de entretenimentos, uma diferente empresa de streaming também liberou por um mês o acesso à sua mais nova plataforma de filmes. Obviamente eu aproveitei, e assisti alguns filmes clássicos que sempre quis ver. Pra um deles fui desavisada: “A lagoa Azul” (e a Brooke Shields só tinha uns quinze anos quando gravou isso!). Um outro foi “Titanic” (na boa, que morte ridícula! Jack teve todas as oportunidades de viver, todas!). No fim das contas, a plataforma era bem ruim, mas eu até que aproveitei pra ver algumas coisas novas.

Uma outra empresa, agora de streaming de músicas, liberou três meses - três! - de plano ilimitado. Também aproveitei bem e deixei os algoritmos da internet ditarem a trilha sonora dos meus dias dentro de casa. Tanta música boa... tantas que tinha tudo a ver comigo... E assim meu gosto musical foi expandido - que bela expansão!

Um novo tipo de diversão que descobri nesses dias foi... o mundo dos doramas! É o termo genérico para novelas asiáticas no geral. Elas são normalmente mais curtas e têm algo entre dez e vinte episódios geralmente. Já assisti mais de quatorze e ainda não saí da primeira parte coreana. Os doramas foram responsáveis por alegrar diametralmente o meu confinamento.

É um idioma totalmente novo, fazendo música nos meus ouvidos. Gaps e mais gaps culturais formando quebra-cabeças com algumas peças ainda faltando na minha mente. Casais fofinhos demais da conta maquiando a realidade nas telas. Gente bonita pra caramba! Nisso eu descobri algumas amigas que cultivavam esse mesmo interesse, e consegui ter belos momentos assistindo essas séries com elas remotamente. Foi quase como se estivéssemos no mesmo ambiente. Foi quase como se estivéssemos vivendo na normalidade. Foi quase como se estivesse tudo bem como a novela. E esse foi um ponto alto da quarentena.

PÂNICO, Crise de.

Falta de ar. Uma sensação estranha. Nunca senti isso antes. Eu vou morrer. Meço a temperatura, meço a oxigenação mas está tudo ok. É um aperto no peito que não vai embora. É uma sensação ruim, de morte. Inspira, expira, inspira, expira e inspira. Meu peito: vou morrer!

O coração bate acelerado como um carro de fórmula 1 no talo. É preciso lembrar de respirar, já que parece que desaprendi. Um turbilhão de pensamentos enchem minha mente como as ondas de um mar furioso. Parece que estou rodando, que enchi a cara e as imagens ficam dançando tango na minha frente. Acho que vou vomitar o jantar de hoje. Meu peito: vou morrer.

CASA, Dona de.

Depois de uns meses minha mãe voltou a trabalhar. Ela deu um jeito de ir de casa em casa atendendo uma cliente por vez, com todos os cuidados - já que ela é autônoma, já que as contas não paravam de chegar, já que a realidade era essa.

Eu, pelo contrário, continuei sem qualquer previsão de ter aulas, tornando-me a personificação da vagabundagem brasileira na casa dos vinte anos. E como os armários já tinham sido revirados, não havia mais grandes projetos a serem feitos... Nada de aulas, uma agenda vazia e o traje: pijama. Logo criei novos hábitos: estender tanto a minha cama como também a de minha mãe, organizar todos os cômodos, sempre, limpar todos os cantinhos, sempre. Isso não significa que essas tarefas fossem estranhas para mim, o lance é que agora eu estava totalmente alerta, ligada, exemplar… Tinha certo prazer em gastar cem por cento dos meus segundos cuidando de cada coisa de cada lugar, em ter tudo no meu controle e sob minha responsabilidade, sem romantismos esquisitos de gente que tem fetiche por limpeza e organização.

Eu nunca tive nada disso, mas é estranhamente feliz estar felizmente feliz com uma louça pra lavar, já que graças a Deus eu tinha comida para sujar o prato, já que eu tinha saúde para arear as panelas e já que nasci com mãos para fazê-lo. Agora, parada em casa, focada no meu microcosmo por falta de opção, pude ver o glorioso no ordinário, o estupendo no banal, o incrível no cotidiano.

ONLINE, Teatro.

Não faço nada no teatro já faz um tempo, e infelizmente muito mais do que quatrocentos e trinta e oito dias - muito mais, mesmo! Isso me dói no estômago da alma uma vez por semana, pelo menos. Pra falar a verdade, não foi a explosão da pandemia que me tirou a alegria dos ensaios, textos e palcos...

Agora, mesmo ilhada na minha terra natal, mesmo estando mais perto do meu grupo de atores, o exercício da minha paixão foi impossível. Só que dessa vez não fui só eu quem parou, foi todo mundo, o mundo todo. O jeito foi participar dos encontros promovidos pelo grupo para falar de arte em geral e ver os rostos - ainda que pequeninos - dos meus companheiros na tela. Mais umas horas de tela? Tudo bem, que tempo bom! Que delícia!

DISTÂNCIA, Curso à.

Eu esperei tanto que envelheci mais rápido, mas finalmente voltei a ser universitária. O primeiro bloco do ensino remoto foi um exercício ensaístico para todo corpo docente e discente poder se alocar nesse novo modelo implementado à força pelo cenário mundial. Nesse tempo eu tive a sorte de conseguir puxar três matérias - eu sempre pegava umas nove. Foi chocante. Com tudo fora de órbita eu quase reprovei em uma delas, quase. Mas aprendemos a nos adaptar.

Fazer a graduação à distância nunca esteve nos meus planos, mas é como disse o mais sábio dos terráqueos: o coração humano faz planos, mas a resposta certinha mesmo vem de Deus. Então, fui abraçando os benefícios e malefícios da maneira de viver tão exclusiva desses dias com curiosidade e saudade.

A parte boa é até grande. A distância entre a minha cama e a sala de aula é de cerca de um metro e levo segundos para chegar em qualquer aula. As provas são todas com consulta, nada de decoreba e quase nenhuma pressão. Se der vontade de ir ao banheiro, estou em casa, zero constrangimentos. Falas chatas de gente chata eu muto, nem escuto. Porque, na boa, não me acrescenta em nada. Todos os trabalhos são entregues digitalmente, zero fortunas gastas em impressão. Dependendo da aula, é possível fazer atividades secundárias do tipo exercício físico, lavar a louça ou varrer o chão. Ninguém me vê, a menos que eu queira, o sonho de qualquer aluno mediano sendo realizado: ser invisível. Todos os textos são digitais e gratuitos, nenhum dinheiro gasto na xerox, amém.

Já o lado ruim, esse é enorme! Não tem bandejão e tenho que pensar, comprar, cozinhar e resolver a questão alimentar todos os dias. Se a internet cai, perco a aula. Minha concentração foi roubada: fazer tudo online do dia para noite me tornou a minha melhor versão de vagabunda - juro que não consigo, é muita tela, muita tela mesmo o dia todo! Cada professor dá aula em um lugar diferente, coloca os textos em um lugar diferente, pede para entregar trabalho em um lugar diferente. Fico o dia inteiro na mesma cadeira, imprópria para a vida remota, minhas costas reclamam de tempos em tempos aos gritos. Se a internet trava, perco a aula. Não vejo meus amigos e colegas. Não dá para trocar ideia entre aulas e a gente não consegue se ajudar tanto nas disciplinas que compartilhamos. Não encontro gente nova nos corredores, pois já não existem corredores. Estou sozinha e a merda é que eu nunca fui autodidata, nunca mesmo.

CORONA-VÍRUS, Mortes por.

Logo nos primeiros meses de pandemia em solo brasileiro houve a primeira morte de alguém conhecido meu para Covid-19. Uma cliente da minha mãe faleceu depois de alguns dias de internação: uma senhora de aproximadamente sessenta anos cheia de entusiasmo que trabalhava como cozinheira na casa de uma família podre de rica. Ela deixou para trás um namorado, filhos e netos. Eu não a conheci, mas foi chocante saber que alguém de tão perto tinha ido embora para sempre por conta desse bicho - até por que era tudo tão novo, tão recente, principalmente no Brasil.

Um tio-avô meu também deixou de comer, falar, escutar e respirar alguns pares de meses depois. Ele era irmão da minha falecida avó materna e se eu o vi duas vezes já foram vezes demais. Devia ter uns setenta anos para mais. Estranhamente, o homem se parecia demais com um tio meu, irmão da minha mãe. Isso me faz pensar no quanto meus filhos irão se parecer com meus irmãos não nascidos, mas isso já é viagem demais enquanto se fala de morte. O fato é que esse tio-avô não era próximo nem da minha avó, imagina de mim. Mas mesmo assim era chocante.

O irmão do meu aluno morreu, só tinha vinte e sete anos. Vinte, mais sete, mais nada. Era também filho de uma grande amiga da minha mãe. E um advogado prestes a se casar no papel. Ele tinha asma, então quando a covid veio foi complicado... Foram dias intermináveis de sofrimento enquanto ele ficou internado. Pra ele e pra sua mãe e pro seu irmão. Sofri junto com eles, orei muito pela cura dele, vi o desespero deles. O pior aconteceu. Chocante. Uma mãe perdeu um filho. Um garoto perdeu seu irmão mais velho. Minha espinha ainda fica arrepiada só de pensar nisso, só de imaginar o sofrimento deles. Eu não tive palavras. Eu ainda não tenho palavras. Eu acho que não existem palavras, nem se eu caçar em todos os idiomas, dicionários e dialetos que existiram e existem. Eu não tenho palavras.

Um colega pegou covid junto com toda a família. O seu pai, sua mãe e seu irmão foram internados, todos na UTI. Pude acompanhar um teco do sofrimento dele recebendo notícias de cada um deles, tombado pela doença que alcançava não só o seu corpo, mas os corpos dos seus mais próximos. Pude orar por eles. O pai teve alta num dia e no outro meu amigo perdeu o irmão e a mãe, sim, no mesmo dia. O pior aconteceu. Chocante. Filhos perderam a mãe. Um marido perdeu a esposa. Um homem perdeu o irmão mais velho. Que soco no estômago. Que soco na boca. Que soco no peito. Que soco nas bolas. Que soco na mente. Eu não tive palavras. Eu ainda não tenho palavras. Eu acho que não existem palavras, nem se eu caçar em todos os idiomas, dicionários e dialetos... Eu não tenho palavras.

PROFISSÃO, Início do exercício da.

Como uma jovem estudante que nasceu no tempo errado, eu comecei a trabalhar depois do aperitivo de apocalipse experienciado pela humanidade. Estou aprendendo a ser professora assim. Sem ver os alunos, sem ficar com o braço doendo de escrever na lousa, sem precisar fazer contato visual, colocando conteúdo no classroom, desbravando diferentes plataformas...

Assim que eu venho aprendendo. Justamente com essas incertezas quanto ao futuro, com as perguntas quanto ao cenário do mundo quando eu finalmente me formar - se ainda existir a universidade para que eu saia dela. Dessa maneira: tentando viver um dia de cada vez, respirando fundo a cada segundo - já que a única coisa que eu tenho certeza de ter é o hoje, só o hoje.

HOJE, O novo normal de.

Parei de ser a dona de casa perfeita, tenho comido melhor e a rotina de treinos está invicta. As aulas remotas estão rolando, com suas bonanças e desgraças e acontecerão por tempo indeterminado, já que imunizar a população tem sido um processo lento.

Ainda lavo as compras de mercado, me sinto nua sem máscara, não me encontro com meus amigos, fico boa parte do dia de pijama e vivo o luto das pessoas enlutadas próximas a mim.

Ainda vivo com medo, medo de perder alguém, medo de minha mãe ficar sem trabalhar, medo de crise de pânico, medo de não ter emprego, medo de não me formar, medo de minha mãe ficar internada, medo de me formar remotamente, medo de não ver meus amigos regularmente nunca mais.

Mantenho a esperança na picada da vacina, sim, a que vai nos proporcionar uma realidade diferente com uma vida mais real, presencial e como costumava ser, sem as perfeições que nossas cabeças têm construído desses tempos. Porém, minha verdadeira esperança está no futuro que me espera além dessa vida aqui.

N.V - 06/21

LizaBennet
Enviado por LizaBennet em 19/04/2022
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