Visitado pela angústia

Visitado pela angústia

Naquela tarde de outono, Dr. Silva mais uma vez saia da casa do Sr. Romualdo. É que desde que este último, irmão de sua esposa, sofreu um derrame, quase não sai mais de casa. Logo ele um rico fazendeiro, que viajava muito.

- Teve aquela vez que viajamos desde o Xingu até os confins da Pantanal, eu posso dizer que fui um aventureiro do mundo – pensativo Dr. Silva caminhava lembrando de suas ultimas frases. Sr. Romualdo gostava de se gabar. Todavia agora, só podia se contentar com a paciência do Dr. Silva que sempre o visitava. A princípio, isto se devia ao pedido de sua esposa, que passasse ao menos duas vezes por semana para dar uma palavrinha com seu irmão, que devido à falta de convívio social, tinha seu quadro piorando. Assim, cotidianamente, após o expediente no escritório de advocacia que trabalhava, toda terça e quinta, impreterivelmente às 16:15, Dr. Silva visitava o cunhado para tomar um cafezinho e jogar conversa fora. Na verdade ambos se completavam, pois Dr. Silva era um sujeito pacato e não muito de falar, já o Sr. Romualdo...esse falava pelos cotovelos.

Essa rotina já havia alcançado quase seis meses, no começo Dr. Silva considerava consigo mesmo uma solidariedade de sua parte, agora já havia se acostumado e até gostava.

Pois bem, certa tarde, numa destas quintas feiras,

- Vim visitar o Sr. Romualdo – anunciou-se Dr. Silva ao interfone.

- Pode entrar - uma voz diferente atendeu do outro lado. Dr. Silva estranhou, pois seu cunhado era viúvo e morava apenas com uma empregada, já anciã, que atuava como enfermeira - Deve ter visita – pensou.

Entrou como de costume pelo pequeno portão da frente, mas quando alcançou a entrada, uma linda jovem abriu a porta e disse que entrasse. Dr. Silva ficou inebriado pela beleza daquela garota que devia ter seus vinte e três anos. Possuía uma beleza exótica, um rosto juvenil com corpo de mulher madura. Olhos negros profundos que combinavam naturalmente com seus lindos cabelos negros. Uma pele alva e parecia transbordar de energia. Instintivamente Dr. Silva se recuperou do baque e agiu naturalmente, seguindo-a até a sala onde se encontrada o anfitrião.

- Olá meu nobre amigo, acho que até já posso te chamar de irmão – cumprimentou Sr. Romualdo com seu sorriso farto e continuou seu falatório - Sueli, a antiga empregada estava doente e precisou ser internada na capital...

- Certo - Dr. Silva concordava com a cabeça e admirava um pouco mais aquela menina que o fitava de igual modo enquanto servia o café. Ao mesmo tempo ficava imaginando como nunca a havia visto, já que moravam numa cidade interiorana onde praticamente “todo mundo conhece todo mundo”.

Como falava este seu cunhado, como sempre parecia que não se viam a um tempão. Dr. Silva até que gostava daquela verborragia, contudo, desta vez ele não conseguia manter a atenção na conversa, e como que inevitavelmente, seus olhos vagavam a casa buscando saciar-se.

Ao sair, Claudinha, como disse o Sr. Romualdo, o acompanhou até o portão. A mesma sensação percorria seu corpo, coração batendo forte e o um aperto na garganta. Dr. Silva não conseguia tirar a mão do bolso, escondendo sua aliança.

Diferente de outras tardes quando ia cansado para sua casa, neste dia sentia um misto de alegria, por ter sido contaminado por algo, e culpa, pois estava envolvido com a mesma sensação de quando se apaixonara pela primeira vez por sua atual esposa.

Não, não pode ser – argumentava contra si mesmo no caminhar para a casa. Naquele final de semana, Dr. Silva sentiu-se infectado por algo, não conseguia parar de pensar naquela jovem. A terça-feira nunca pareceu tão distante, não via a hora de fazer sua visita. Quando chegou o dia, eram umas 16:10, habitualmente com a precisão de um relógio, Dr. Silva já estava em frente ao portão. Encarou o interfone como nunca havia feito, havia uma enorme dificuldade em apertar aquele pequeno botão. Não resistiu.

- Vim visitar o Sr. Romualdo, é o Dr. Silva - anunciou sua chegada.

- Tudo bem pode entrar - e pode ouvir aquela voz que considerava extremamente delicada e humilde. Não resistiu e cumprimentou a garota com um aperto de mão, tinha desejo de apertá-la por inteiro. Seguiu normalmente, mas extasiado atrás dela encarando aquele pequeno pescoço que ficava a mostra pelo cabelo preso. No fundo sentia vontade era de mordê-lo. Quando avistou o Sr. Romualdo sentiu como uma lança no peito, pois apesar do aspecto bem masculino de seu cunhado, o mesmo carregava alguns traços faciais de sua esposa.

E assim se seguiram às visitas do Dr. Silva, sempre passando por um caminho estreito que espinhava de um lado com lembranças de sua juventude e virilidade, e do outro, o orgulho de 35 anos de um casamento sólido. Durante suas visitações, é claro, o Sr. Romualdo nada desconfiava, conforme cria o Dr. Silva, já que, como sempre agia com todo aquele entusiasmo de suas conversas. Porém a jovem já notava a admiração e respeitosamente começava a retribuir os olhares para Dr. Silva.

Dr. Silva, após três meses destas, agora revigorantes visitas, também se percebia cada vez mais perturbado. Diversas vezes se pegava com pensamentos malucos: marcar algum encontro às escondidas, fugir com a menina para um outro estado, e às vezes pensava em fazer alguma coisa destas nem que fosse à força. Aquilo simplesmente dominava agora a mente daquele conhecido advogado, que carregava três décadas de serviços honrados naquela pequena cidade.

- E outra – pensava preocupado – esta menina tem a idade da minha filha mais velha! Ele tinha duas meninas, uma de vinte e três e outra de dezoito.

Desta forma, Dr. Silva sabia que não conseguiria ficar nesta situação por muito tempo, teria que tomar alguma decisão, e já pensava em parar de freqüentar a casa do cunhado. Contudo, não conseguia. Rotineiramente realizava aquele ritual, que ora parecia macabro e masoquista a si, ora um delicioso narcótico, um deleite à vida.

- Quem é Claudinha? Perguntou a esposa do Dr. Silva a ele numa certa manhã de sexta-feira. – você falou a noite inteira nela.

- É a filha de minha cliente, um caso horrível, nem quero falar nisto. Sentiu-se muito mal, seus sonhos já começavam a delatar as intenções de seu coração. E o pior, pareciam estar ganhando vida.

Na terça-feira que se seguiu Dr. Silva estava decidido, pensava que após aquela visita tomaria alguma decisão. Estava extremamente angustiado. Aquele caminho costumeiro parecia tão diferente, pensava que podia ser a ultima vez que seguia por ali. Nem é preciso dizer que sua mente estava mal-assombrada por diversos pensamentos. Igualmente seu coração batia rápido e forte, parecia um animal pronto a atacar. Pensava estar beirando a loucura.

Suando frio chegou no portão. Olhava pro lados como um criminoso foragido. Por vezes levava a mão para o botão e depois recuava. Passava a mão no rosto que escorria suor, sentia as mãos úmidas e frias. Fitou o interfone por uns cinco minutos, numa angústia mortal. Pensou em desistir e virou de costa. Quando já tinha dado uns dois passos retornou e rapidamente acionou o tão temido botão.

- Entre – disse o Sr. Romualdo já sabendo de quem se tratava.

- Sim – disse Dr. Silva empalidecendo. Terá ele descoberto? Mas não há como. Somente se Claudinha me delatou – e não pensava somente nisto, mas e se sua esposa estivesse ali também? Diria toda a verdade? Pensava que deveria estar disposto a assumir as conseqüências, apesar de parte de si, dizer que na verdade não havia feito absolutamente nada.

Foi o próprio Sr. Romualdo que o atendeu com o semblante triste. Dr. Silva sabia que alguma coisa havia acontecido. Era o momento.

- Ela se foi – disse o cunhado, antes mesmo dele perguntar.

- Por qual motivo? Respondeu Dr. Silva como que já acostumado com a idéia.

- Sua mãe faleceu, e ela retornou a sua cidade natal para continuar os negócios de costureira que ficaram de herança.

- Entendo, o senhor gostava muito dela, não?

- Não muito, na verdade a empregada anterior era muito mais cuidadosa, essa no começo caprichava mais depois de um certo tempo ficou avoada, meio esquecida.

- Mas então porque motivo o senhor esta tão triste? Aposto que arrumará uma outra melhor.

- Eu sei disso, o problema é que não perdi somente uma empregada, mas creio que perdi também uma amizade. Dr. Silva fingiu que não entendeu a resposta, acabou de tomar seu cafezinho e foi embora meio aéreo.

Após esta tarde, as visitas do Dr. Silva ficaram irregulares, ao ponto dele ali passar uma vez a cada duas semanas, além de que eram bem rápidas, e posteriormente ficando mais remotas. Mesmo com o retorno imediato da antiga empregada anciã, Sr. Romualdo faleceu dois meses depois.