Os relógios de Clarinda

- Muito obrigada.

- Volte sempre.

- Com certeza!

Assim saia Clarinda num início de noite retornando para sua casa toda satisfeita da vida. Não era apenas porque era o dia do recebimento de seu salário de professora universitária, mas pelo fato de fazer o seu hobby preferido: comprar relógios.

- Como pode ser tão bonitinho – pensava consigo.

Também, nesta tarde, como sempre ao comprar seu brinquedo, lembrava da primeira vez que seu pai deu a ela um reloginho quando ainda tinha oito anos. Em sua adolescência era apenas mais um adorno, como um brinco ou pulseira, mas com o tempo passando, seus pais falecendo, também sua paixão aumentou. Desde então sempre que podia, adquiria um novo para sua coleção, que orgulhosamente passavam de cem.

Sua “pequena coleção”, conforme acreditava, se encontrava em seu pequeno quarto.

- Venha ver meus pequenos mimos – dizia sempre que uma amiga a visitava. Tinha relógios em todos os cômodos, inclusive no banheiro. É claro que ela buscava ser o mais discreta possível, pois entendia que seu tempo era diferente dos outros.

Todas as manhãs, conforme seu estado de espírito escolhia um diferente.Tinha de muitas formas e modelos, uns bem floridos para os dias em que estava bem disposta, outros mais simples e discretos para os dias de mau-humor, e assim por diante. Seu entusiasmo era tão grande que sentia um enorme prazer em ter sempre um relógio para cada ocasião e, obviamente para cada tipo de roupa. Já tinha até para combinar com suas calcinhas.

Clarinda simplesmente adorava relógios, e não só os de pulso, mas também os de parede...Contanto que fizesse tic-tac. É verdade que ela não era fã dos digitais.

- Não obrigada – dizia ao vendedor – são muito frios, não são de verdade.

Tinha veneração era por aqueles dois ponteiros. Certa vez quando ficou absorta em seus pensamentos, imaginou seu pai como o ponteiro grande, como alguém amado, e o pequeno como ela, uma viajante que sempre retornava para dar-lhe um beijo. Neste dia ela chorou.

A admiração que tinha por estes medidores, refletia também em sua vida. Era intolerante com atrasos, na verdade pode ser dito que a coisa que mais odiava em alguém era um atraso. Ela sabia desta sua fraqueza, tanto que por isso ainda não havia conseguido acertar seus ponteiros com ninguém. Nunca foi de namorar muito, e cria que principalmente por isso. Ficava irada quando o namorado marcava um lugar e não vinha no horário. Lembrava de quando o pai certa vez demorou muito para buscá-la na saída do colégio, aquilo foi marcante na vida dela.

No trabalho não era diferente, nutria profunda insatisfação com certos alunos que não conseguiam chegar no horário combinado. Isto acabou se tornando sua marca registrada: era a única professora que tirava pontos de quem chegava após a tolerância de quinze minutos, e diga-se quinze minutos cravados.

- Ou chega no horário ou nem vem - dizia ela sempre no primeiro dia de aula.

A questão principal é que uma leve solidão começava a consumir seu tempo. Clarinda começou a se atentar a este ponto quando numa noite acordou suada por ter sonhado que estava presa dentro da parte de cima de uma gigante ampulheta de vidro, que a sugava para baixo. Foi horrível.

A partir desta noite, começou a tentar olhar os homens não mais como relógios, mas como pretendentes.

- Já vou para os quarenta anos e ainda não me casei – certa vez confessou com outra professora do colégio.

- Liga não – mais cedo ou mais tarde você vai encontrar a pessoa certa.

Clarinda odiava quando alguém dizia esta frase, apesar de saber que diziam para o seu bem. É que entendia que este mais cedo já estava atrasado, e o mais tarde então, nem se fala. Ela estava decidida a conseguir alguém o mais rápido possível. Começava até a desconfiar de que sua afeição por relógios acabaria por deixá-la louca se não encontrasse ninguém.

- É que cada vez que fico ansiosa, sinto um desejo muito grande de comprar vários relógios... Tem horas que eu...que eu queria ser um relógio – confessava Clarinda à sua terapeuta.

Já tinha passado um mês daquele sonho horrível, e sentia um enorme vazio naquela tarde, quando se dirigia para mais uma vez comprar um relógio. Quando ainda contemplava aquelas criancinhas, todas dançando em sua frente, teve um susto. Um homem que também estava ali conversando com um vendedor, portava uma revista sobre relógios. Quase não se agüentou, seu coração palpitava rapidamente.

- Ele parece ser mais velho, mas é muito bonito, e aquele rolex... – excitada pensava. Este era simplesmente seu maior sonho de consumo. Uma das primeiras coisas que olhava para um homem era o tipo de relógio que usava, se não usasse então, era descartado na hora. O homem saiu e Clarinda não resistiu e foi atrás. Ele tinha o passo firme e compassado ao atravessar a rua, que a animava. Um certo momento ele parado no sinal olhou para seu pulso conferindo as horas, Clarinda quase derreteu no mesmo instante. – E se for casado? E se nem der bola pra mim? - Ficava ansiosa imaginando conforme seguia aquele homem.

Após quatorze minutos e vinte e cinco segundos de caminhada, conforme calculou, viu que ele entrava numa porta estreita de um sobrado que funcionava como galeria para várias lojas.

- Devo estar enlouquecendo mesmo – e seguiu atrás. Subiu aquelas escadas como se conhecesse já aquele lugar escuro. Encontrou uma porta de madeira a sua esquerda. Não resistiu e tocou a campainha.

- Por favor, entre – dizia a jovem garota que a atendeu delicadamente.

- Obrigada – retribuía a gentileza o quanto podia, pois Clarinda estava se remoendo por dentro tentando imaginar quem seria aquela magrela.

- A senhora tem hora marcada com o Sr. Rubens? Perguntou a atendente. Senhora? – pensou Clarinda, ela só pode estar me gozando, mas que bom que já sei o nome dele.

- Não, tenho não, mas desejo vê-lo – afirmou como quem tem já conhecimento de quem se tratava.

- Ok, aguarde por favor.

Só então que Clarinda notou onde estava. Era o primeiro andar de uma conhecida joalheria. Pelo que viu do local, Sr. Rubens era um ourives e relojoeiro.

- Mas e agora? – pensava confusa nem sabendo o que fazia mais ali – e lá vem aquela garota.

- Pode entrar – disse a Clarinda abrindo uma outra porta. A professora entrou confusa pensando o que dizer aquele homem.

- Sim posso ajudá-la? – a voz daquele homem a deixava toda mole, tinha vontade de pedi-lo em casamento naquele mesmo momento e propor ter muitos filhos o quanto antes.

- É que...é que... – não saia nada.

- Sim – disse ele todo simpático.

- É que...meu relógio está atrasando – apontou para o relógio em seu pulso.

- Ó que belíssimo relógio, posso? – segurando em seu braço. Ela quase desmaiou com aquele toque suave.

- Claro.

Ele conferiu e, é lógico, nada encontrou de errado.

Clarinda saiu dali radiante, parecia um reloginho recém construído.

Os dias se seguiram e ela pensava em como poder voltar a vê-lo. Acabou por dar um jeitinho de atrasar um de seus relógios só pra voltar ali.

- O Sr. Rubens está? – perguntou à atendente.

- Sim, está sim, benzinho é aquela cliente de novo – disse a atendente com um sorriso falso, como que destilando um veneno mortal.

O mundo desabou, até o relógio biológico de Clarinda parece que saiu dos eixos. Ficou tão irada que seu estômago embrulhou na hora.

- Olá Clarinda, o que é que foi agora – respondeu Sr. Rubens com a mesma doçura de sempre.

- É o meu relógio.

Ele acertou os ponteiros com a mesma precisão de sempre, mas ela não via a hora de sair o mais rápido dali. Nem é preciso dizer o quanto ela ficou triste. Parece que não encontraria seu outro ponteiro tão cedo.

Passado um mês, dois dias e dezoito horas, tocou a campainha da casa de Clarinda. Era o encanador que havia chamado.

- A senhora é dona Clarinda?

- Sim, você é o Juarez que vai arrumar a pia, certo?

- Eu mesmo senhora.

- O senhor marcou às treze horas e já são treze e dezesseis.

- Desculpa ai senhora, mas posso entrar para resolver o problema caso queira ainda?

- Sim, sim, entre.

Conforme dito anteriormente Clarinda simplesmente odiava atrasos, contudo este rapaz tinha uma feição conhecida, algo diferente.

- Pronto dona, ta arrumado.

- Juarez, eu sei que havíamos combinado cinqüenta reais pelo conserto, mas notei que você não usa relógio.

- É verdade, acho que preciso comprar um.

- Faz assim, se você quiser eu te pago com um que vale mais que isso.

- Beleza então.

Clarinda correu ao seu quarto e pegou o antigo relógio que seu pai lhe dera. Sentiu um aperto no coração, mas parecia que fazia a coisa certa. Entregou a Juarez.

Dois dias depois, quando ela chegava em casa. O encanador estava em frente de sua casa.

- Tudo bem dona Clarinda?

- Tudo, o que foi, não gostou do relógio?

- Gostei sim, mas eu estava pensando... se a senhora não ficar chateada...eu sou novo na cidade, pensei em chamá-la jantarmos algum dia desses, que tal?

- Ah, vamos sim, mas com uma condição.

- Claro, diga.

- Sem atrasos.

- Certo, vou tentar.

Bem, eu bem que poderia parar de contar o que aconteceu por aqui, mas o fato é que Juarez não conseguiu chegar no horário e se atrasou. Aí você já sabe o que aconteceu não é? Não, Clarinda se conteve ao máximo, e olhando pro braço dele adornado com aquele simples objeto, acalmou seu coração e perdoou-lhe. Saíram então várias vezes, se casaram...e eles viveram assim, como se diz, acertados para sempre, ela pontual e ele com “uns defeitinhos”, como dizia às amigas.