A superfície de Vênus

A moderna cidade construída no deserto, com suas torres de aço e vidro e parques com chafarizes e palmeiras, parecia uma miragem tremeluzindo ao sol. Naquele fim de manhã de verão, enquanto Haoniyao dirigia a Mercedes-Benz blindada para buscar seu patrão no escritório, o termômetro no painel do veículo indicava que a temperatura externa havia atingido os 50º C. As calçadas estavam desertas, e nas ruas, todos os automóveis em circulação tinham os vidros fechados e o ar condicionado no máximo.

- Não é uma boa manhã para fazer jogging - ouviu Haoniyao pelo rádio da Mercedes. O locutor estava se referindo de forma jocosa à atividade física, mas na realidade local, sujeita aos humores da censura governamental, isso poderia ser subentendido como um alerta: ninguém deveria estar trabalhando ao ar livre, sob sério risco de morte. Não que algumas pessoas, particularmente trabalhadores estrangeiros, tivessem muita opção em relação a isso...

- Se você realmente precisar sair do conforto do ar condicionado, - prosseguiu o locutor, como se essa fosse a realidade para a maioria da população - procure se manter na sombra e se hidrate todo o tempo. Não queremos que morra de insolação, não é mesmo?

Haoniyao entrou numa grande avenida de seis pistas que levava ao centro financeiro da cidade. No canteiro central à sua esquerda, avistou um grupo de trabalhadores trabalhando numa escavação. Todos vestiam roupas protetoras que os cobriam quase como se fossem burcas, mas mesmo assim, teoricamente não deveriam estar ali; no verão, trabalho pesado como aquele, exercido a céu aberto, só poderia ser liberado após o pôr do sol. Exceto se fosse uma emergência. Ou que alguém influente quisesse ver a obra terminada o mais rápido possível, não importando o risco de vida para os trabalhadores.

- E se você é comerciante e tem uma loja de rua, - comentou o locutor - espero que a distância entre o estacionamento e a sua porta de entrada seja curta, ou hoje seus clientes podem decidir ir fazer compras num shopping.

Uma outra possibilidade, pensou Haoniyao, seria ir embora da cidade. Mas ali, os salários eram bons e isso retardava a decisão de muitos em partir; no caso dele, passar de segurança à motorista particular fizera toda a diferença. Ao menos, não tinha mais que se expor ao calor do dia, coberto de suor dos pés à cabeça...

- A NASA está fazendo estudos para colocar um robô em Vênus, - prosseguiu o locutor - cuja temperatura na superfície é um pouco mais elevada do que na nossa cidade no verão... brincadeira. A temperatura lá é capaz de derreter chumbo. Mas se em vez do robô quiserem mandar um homem, provavelmente vamos ter vários voluntários aqui na cidade. De calor, nós entendemos.

Haoniyao entrou com o automóvel no estacionamento subterrâneo do edifício onde o patrão mantinha um escritório. Ali embaixo, ao menos, a temperatura ambiente ainda era tolerável, e o elevador possuía ar condicionado. Subiu para o 56º andar e adentrou a recepção de um grupo de salas em estilo vanguardista. A recepcionista, uma filipina chamada Estralita, o recebeu com um sorriso.

- Haoniyao! O Sr. el-Saba ainda não terminou a reunião; sente-se e aguarde.

Haoniyao acatou a sugestão.

- Acredita que vi um grupo de peões, quase agora, numa obra na avenida Bakar el-Salehi? - Comentou.

A jovem franziu os lábios.

- Algum trabalho emergencial... gás, energia, internet.

- É engraçado que ficam falando em mandar robôs para Vênus, mas ninguém pensa nas condições de trabalho aqui mesmo, na Terra - filosofou Haoniyao.

- Prioridades - replicou Estralita. - Mas acho que a reunião de hoje do Sr. el-Saba está abordando justamente essa questão.

- Melhoria das condições de trabalho? - Indagou esperançoso Haoniyao.

- Quem dera - suspirou a recepcionista. - Ele está com empresários chineses, do ramo de automação industrial. Parece que estão desenvolvendo um tipo de robô autônomo, capaz de funcionar em condições extremas.

- Poderiam fazer uma oferta para a NASA - gracejou Haoniyao.

- Desconfio que o alvo deles esteja bem mais próximo - replicou Estralita, baixando a voz.

- Percebo - redarguiu Haoniyao, em tom conspiratório. - Se tiverem sucesso, sempre vão poder dizer que estão preocupados com o bem-estar dos imigrantes.

- Se eles tiverem sucesso, creio que não vão mais precisar de imigrantes... - ponderou a recepcionista. - Ao menos, não do tipo que trabalha ao ar livre num calor de 50º C.

Por ora, sabiam Haoniyao e Estralita, seus empregos estavam assegurados.

Por ora.

- [09-06-2022]