Borboleta: agora eu sou

Para ela, o mundo, de início, era aquela dúvida insistente, a sensação de que algo estava errado, inadequado, fora do lugar. O tempo passava e todos os dias eram uma espera confusa entre tics que não se encaixavam nos tacs.

Depois, houve a desistência. Ela desistiu e tornou-se dura. Um corpo úmido e solitário fechado em si perguntando num murmúrio contínuo que poderia ser uma reza, um mantra ou simples delírio:

- E-agora-e-agora-e-agora-e-agora-e-agora...?

Veio a escuridão, e o silêncio tornou-se tudo. Só o que ela via era a dúvida, só o que ela ouvia era o medo.-

E-agora-e-agora-e-agora-e-agora-e-agora...?

Até que, finalmente, chegou aquele dia. Era domingo, o sol estava ameno. Algo ferveu dentro dela, recontorceu, saiu das entranhas e revirou do avesso o que até então era superfície; e a base do mundo todo se partiu numa casca subitamente inútil.

Umas coisinhas finas esticaram-se, um adendo ao seu corpo antes tão nu. E tinham vida própria. Ao encontrarem o sol, descobriram um frescor que tinha cheiro de verdade e gosto de recompensa. De repente, ela percebeu que o vento era um amigo e o espaço, um convite.

Foi quando ela se lembrou do murmúrio inquieto e pôde respondê-lo com tranquilidade, porque a dor da dúvida e do medo pousava numa flor e se dissolvia naquela nova realidade:

- E agora eu sou - ela disse para si.