BO no velório

O velório segue tranquilo. Pessoal comportado na capela funerária, o morto confortável em seu lugar. Divorciado, uma família em cada lado do caixão, filhos, filhas e viúvas. Simetria pura.

De repente, entra um senhor, uma sacolinha de supermercado na mão. Olha em volta, tenta reconhecer alguém, parece que ficou no zero mesmo. Foi à urna tirar as dúvidas e examinou o rosto do falecido. Reconheceu-o, sorriu, abriu a sacola, retirou uma lata de cerveja e trek... estalou, abriu e virou com satisfação goela abaixo. Como se não fosse pouco, tomou outro gole, chegou na janelinha da urna e disse para o morto, mas todo mundo ouviu:

- Isso era o que você gostava! Vai com Deus!

Acendeu um cigarro, voltou ao caixão, soprou na janelinha e repetiu:

- Isso era o que você gostava! Vai com Deus!

Uma das filhas adultas do primeiro casamento sussurrava no ouvido da mãe:

- Isso é um desaforo, vou sair na porrada com ele. Aposto que foi a sirigaita que arrumou esse cachaceiro pra desmoralizar nossa família.

A mãe fez um gesto de contenção, deixa isso pra lá, deve ser um bêbado que errou de velório, não esquenta.

A filha, pavio curto, descrentou-se da mãe e partiu pra falar com o intruso:

- O senhor conhece o morto?

- Eu conheço, você não conhece?

- Claro que conheço, é meu pai - respondeu meio desconcertada.

- E ele era meu companheiro de boteco. Muito prazer, seu pai era um homem bom, alegre e dançava bem pra caralho. Vim pra me despedir dele. E fui eu que levei ele de carroça na sua casa, quando ele morou na minha.

A filha ia partir pra esmurrar aquele língua suja, mas a mãe segurou pelos ombros, levou-a para longe do bafafá e pediu calma.

- É amigo de farra de seu pai. Que que tem de errado?

E a filha:

- Mãe, isso é a outra que inventou. Eu sabia, tava quieta demais.

- Que outra? Aquela ali já é quase nossa família, cuidou bem dele, tem que agradecer, roeu o osso, o filé foi meu.

O caminho até a sepultura uniu todo mundo, pelo menos enquanto durou o samba do Zeca Pagodinho:

- Deixa a vida me levar, vida leva eu...

O amigo fiel sumiu antes da dispersão. Na certa, foi comemorar num bar ali por perto.

William Santiago
Enviado por William Santiago em 05/08/2022
Reeditado em 05/08/2022
Código do texto: T7575434
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