Simplesinho

Acabou de almoçar na hora do café da tarde. Jogou a marmita para o lado e deitou sobre um tapete cheio de graxa. Suspirou profundamente e semi dormiu. Depois foram luzes, pisca-piscas, clarões, sons, buzinas, frenagens, apesar de se parecer com um quadro epiléptico era apenas um sonho apressado do mecânico Tobias. Sonhava com carros quase todas as noites.

Levantou de um pulo. Abriu a porta da oficina. Era um barracão retangular com ferramentas espalhadas pelo chão, motores na bancada de madeira e fotos de jogadores e mulheres na parede. Situava-se à beira da rodovia. Tinha um radar próximo e câmeras no poste. Era seguro, todo mundo dizia.

Andou coçando a gasolina do corpo misturada com suor. Ficou tonto sem saber por qual motor começar. Eram dois ou três. Os carros pareciam carcaças sem coração sob o sol lá fora. Pegou um trapo, passou no vão dos dedos e ficou pensando: se tivesse ali um carro que prestasse desceria até a cidade. Tomar um gole para tomar coragem e vencer o restante do dia.

Mas, ele não é motorista. Nunca foi. O seu trabalho não é dirigir, bem ou mal. É consertar, quando possível. O problema é que às vezes ele sentia que o seu corpo foi dirigido por outros. E as outras pessoas não têm dó do corpo da gente: dirigem aos atropelos, da forma que querem ou que sabem. Por isso resolveu ser seu próprio patrão. Seu corpo era um carro antigo que ele vinha dirigindo desde 1970.

Depois de duas horas trabalhando em um motor velho, sentiu a dor de dentes como pancadas na vitrine do corpo. Na porta da cara. Apagou a única luz de teto e baixou a porta com toda a força sobre o pé direito. Esqueceu a dor de dentes na hora. Ainda conseguiu fechar o cadeado.

Saiu capengando a caminho de casa. Cada passo ressoava na cabeça como batida de martelo. Olhava para o céu crepuscular e gemia. Não chorava porque o corpo estava seco.

Ainda bem que tenho uma mulher que me tem também, pensou sorrindo. Fez uma breve parada no boteco da entrada da cidade, tomou apenas uma dose, pediu para marcar e desceu com o estômago embrulhando.

Quando chegou a casa percebeu o silêncio. Intuiu o encontro de senhoras da terceira idade. Tomou um Dipirona, se fechou no banheiro: defecou, banhou e sorriu, mas não escovou os dentes. Saiu e foi ao fogão esquentar a comida. Comeu as sobras do frango enquanto assistia à TV. Em seguida encontrou a porta do quarto e dormiu de barriga para cima. Sonhou de novo, quase o mesmo sonho.

O mundo acabando, o juízo final, era como uma grande colisão entre carretas, carros, ônibus, motos, bicicletas, caminhões todos se trombando de uma só e única vez.

Acordou com a cama balançando, a mulher dizendo boa noite e ele perdido sem saber que horas eram. Ficou um pouco confuso, tentando articular palavra. O dente já não doía. O pé também não. A mulher se achegou a ele com sua quentura natural. Tobias deu lhe um beijo na nuca e disse que ia ao banheiro escovar os dentes. Foi. Quando voltou a mulher estava acordada. Estava bonita, parecendo um carro novo. Então, entrou debaixo dos lençóis e fizeram o que melhor sabiam fazer.

No outro dia cedo, ele foi para o trabalho com a bicicleta da mulher. Pedalava feliz. Ela também havia ficado assoviando na cozinha. Tobias pedalava a favor do vento. Viu a fila de carros ao longe. Percebeu que teria um dia cheio pela frente.

À medida em que foi se aproximando foi sentindo a tontura do medo, da angústia e do desespero. Viu claramente um caminhão com a cabine toda atravessada dentro de sua oficina. Faltou pernas e ele caiu da bicicleta. Ficou sentado no barranco enquanto as lágrimas desciam. Começou a chorar, o dente começou a doer e o pé a latejar. Abriu a boca e engoliu uma grande golfada de ar daquela manhã. Levantou-se com as pernas tremendo e foi se aproximando do local.

Próximo à oficina as marcas da freada. O motorista não se machucou. Apenas reclamava com as mãos na cabeça o prejuízo que ia ter que pagar.

Tobias se distanciou um pouco, pegou o celular e ligou para a mulher. Não sabia se chorava ou se sorria ao lhe dar a notícia. Mas, lá no fundo estava feliz por ter ficado meia hora a mais na cama com ela.

make
Enviado por make em 13/10/2022
Reeditado em 13/10/2022
Código do texto: T7626822
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