NA FILA
Escolhia os sabores dos salgadinhos prontos para petiscar, quando Dona Mariângela passou empurrando seu carrinho com falta de lubrificação nas rodas. O ruído parecia não a perturbar. Saudou alguém no final do corredor com aquele tom de voz alto, grasnado — e irritante desde os tempos do ensino primário.
— Tudo bem com você? E Adriana, como está? E a bebê? Já escolheu o nome? Seus pais vão bem? Fiquei sabendo do Seu Antônio, seu vizinho. Coisa absurda, não?
Era uma metralhadora de perguntas cheia de curiosidade. Iria passar por ela, pois queria comprar salame e azeitonas para complementar a “entrada” do churrasco de logo mais. Não pude deixar de rir da calça verde esmeralda, sob uma blusa cor de abóbora berrante e sua insuperável coleção de lenços de cabelo. Escolheu um azul claro, com desenhos multicolores. Era outra marca registrada, aquelas combinações esdrúxulas de cores para vestir. Não à toa, era professora de línguas e não de educação artística. Exigia a perfeição dos seus alunos nas notas e poucos guardavam boas lembranças de suas aulas.
Lembro dos castigos ditatoriais, quando nos obrigava a preencher o quadro negro com frases como “Eu venho para a escola para ouvir e aprender. Só falarei quando for autorizado pela professora!” Nunca esqueci dessa. Fiz a besteira de sorrir triunfante após cumprir o castigo. Dona Mariângela me fez apagar todo o quadro e repetir a tarefa. Eram outros tempos, onde os professores eram respeitados. Eu maldizia apenas em pensamento, pois a educação que recebi de meus pais, não permitia o desacato, como hoje em dia muita criança faz.
Moveu o carrinho, interrompendo minha investida, e entrou também na fila dos embutidos. O perfume adocicado de fragrâncias compradas por correspondência, invadiu minhas narinas. Virou-se e mediu-me, como se fosse um absurdo estar na mesma fila. Fingi desatenção. Dona Mariângela era aposentada e viúva, vivia só, pois os filhos estavam bem estabelecidos na capital e vinham visitá-la todo mês, pelo que eu soube. Sua ocupação principal era inquirir sobre a vida alheia. Empinava o nariz com arrogância, como se fosse uma joia da coroa.
Quando chegou sua vez, contornou o carrinho e aproximou-se do balcão. Não se importou de abandonar as compras. Senti vontade de tirá-lo do meu caminho, mas o instinto recomendou prudência. Não reclamei e mantive minha posição. Paciente, fiquei observando as próximas atitudes.
— Ora, ora, ora! — exclamou ela admirada, parecendo reconhecer o balconista. Pedro Paulo era um louro alto e forte, de olhos verdes e irritado por natureza. Conhecia-o do Bar do Alceu, onde assistia aos jogos de futebol no domingo, praguejando contra o próprio time.
— Bom dia, professora! Como vai? — perguntou amistosamente.
— E não é que você deu certo para alguma coisa, hein Pedro Paulo Paranhos de Souza? Vou bem, obrigada.
Ele pareceu não se importar com o comentário. Era coisa da personalidade dela. Era assim desde quando lecionava, agindo com ar de superioridade sobre certos alunos. Compreendi de pronto: Pedro Paulo era mais um “da minha turma”. Deveria ter a mesma dificuldade em atingir o conceito de bom aluno, na escala de Dona Mariângela.
— Do que a senhora precisa hoje? — Ele pareceu se esforçar para manter-se solícito e educado. Captei naqueles olhos verdes e na expressão das sobrancelhas, um pedido claro de “Deus, dai-me paciência”.
— Quero presunto. Uns trezentos gramas.
— Ok, trezentas gramas de qual...
Ela o interrompeu com o dedo em riste e um tom levemente debochado.
— É trezentos, Pedro Paulo! Grama é uma palavra masculina. Diz-se trezentos gramas — ensinou.
Ele apenas suspirou e acenou positivamente com a cabeça. Eu percebi que aquela correção o irritou mais um pouco. Me causou o mesmo efeito. Era famoso entre os ex-alunos, esse comportamento. Pedi paciência aos céus junto com o balconista. Pelo visto aquele atendimento iria longe.
— E qual o presunto a senhora quer? Presunto Cozido, Defumado, de Parma, temos também Presunto Cru, Royal, o Serrano. Qual vai ser? — Agora quem debochou foi ele.
— Nossa! E não é que ao menos alguma coisa você aprendeu nessa vida?
Uma animosidade clara estava declarada. Pedro Paulo abaixou a cabeça e espalmou as mãos sobre o tampo do balcão, respirando fundo. Parecia se conter. Foi rápido e em menos de um segundo, disfarçou a contrariedade. Mas sorriu cínico, aguardando o pedido. Ela devolveu o sorriso e cruzou os braços. Apesar de estar de costas, pude imaginar o ar de deboche no rosto dela, quando disse:
— Se entende tanto de presunto, me diga qual o melhor para utilizar numa receita de risoto à romanesca.
O sorriso de Pedro Paulo se modificou. Ergueu as sobrancelhas com ar blasé e respondeu imitando ligeiramente o tom de voz:
— Se preferir uma receita mais condimentada, recomendo o Presunto Serrano, uma receita espanhola com carne mais temperada. Agora se a senhora quiser algo mais leve ao paladar, sugiro levar o Presunto de Parma.
— Pois então, trezentos gramas de presunto de Parma. Vamos ver se fica bom.
Pedro Paulo abriu a porta de vidro e agarrou a peça com as duas mãos.
— A senhora prefere um pedaço só, ou fatias grossas?
— Fatias.
Surpreso, vi a animosidade se dissipar rapidamente. Troquei minha cesta de mãos, pronto para avançar na fila. Agradeci por aquele princípio de discussão não ter se prolongado muito e já pensei nos itens subsequentes de minha lista de ingredientes para meu compromisso.
Ele entregou o pacote sobre o balcão e ela olhou a etiqueta do preço, antes de girar o corpo e colocá-lo dentro do carrinho. Voltou a ficar de frente.
— Algo mais, Dona Mariângela?
— Quais os salames que vocês têm?
Girei nos calcanhares e saí dali a passo apressado.