MANHÃ DE DOMINGO

Despertou apenas quando um pássaro saiu do meio das folhas de uma árvore miúda, esbaforido, quase trombando com sua cabeça. Era manhã de domingo e já estava perto de casa. Um sorriso bobo, duradouro, tomando-lhe os lábios e o olhar. Via a rua sem as certezas de quem só sabe reclamar. Apreendeu toda a sua beleza comum. Compreendeu os tufos verdes de mato, em sua luta para ocupar espaço onde a calçada rachou. Soube que o concreto havia dado tudo de si, para proteger o passeio por tanto tempo. O giz que escreveu e o vento e a chuva que apagou o mundo de criança rabiscado aqui e ali. Pela sua mente passou a certeza de tudo ter começo e final, com uma existência prazerosa entre os dois.

— É preciso valorizar a estrada — avisou um desconhecido invisível.

Ouviu muitos deles naquela noite alucinante, em que todas as emoções tiveram sua vez. Seus olhos acompanharam o voar do pássaro e por um instante, perguntou-se como chegara até ali. Riu. Sacudiu a cabeça, abençoando a sorte de todos os notívagos. Avançou pelo hall de entrada, sorriu um bom dia ao porteiro, mantendo o silêncio para si. Era um conforto quando as palavras não eram necessárias.

Admirou a solidez da construção do edifício, enquanto o elevador subia. Pensou sobre toda a história que aquelas paredes segredavam, todo o esforço dos construtores, os momentos alegres e tristes dos moradores, as entregas de chave, casamentos, separações, infâncias e juventudes. Os primeiros beijos. Tudo ali, ao alcance de sua mágica imaginação.

Toda a família o esperava, exasperada. A mãe o recebeu em um abraço apertado, cheio de agradecimento a Deus, aos Santos de devoção, e beijos e carícias. Encheu-o de perguntas e logo uma balbúrdia tomou o ambiente. Nada daquilo o tirou do transe. Pesar, preocupação, angústia, alívio, zelo, felicidade, esperança, ternura, amor. Ele flutuou, inocente. Sua cabeça estava em outro lugar.

Ainda pulava lá na pista, em êxtase por ouvir a trilha sonora de sua vida. Músicas tão significativas para o momento. Um refrão composto de refrões. Insuflaram seu espírito e o puseram feliz. Flashes das pessoas à sua volta, gritando cheias de energia, algo como “mas é preciso ter força, é preciso ter raça, é preciso ter gana, sempre”, ou então “felicidade, brilha no ar, como uma estrela que não está lá”. Tudo rolando em “mais uma dose e é claro que estou a fim”. A noite valera a pena, pois era “para o dia nascer feliz”, sempre.

As vozes foram calando, pois havia perguntas aguardando uma resposta. Limitou-se a sorrir com mais rugas, deixando-os falar. Sua resposta era o sorriso. Não precisava usar palavras, pois nada tinha a dizer. Saíra dali há pouco mais de dez horas e retornava agora sem dizer onde fora e com quem. Trazia-lhes sua felicidade como resposta.

O silêncio tomou conta de todos aos poucos, e a maioria retomou a mesa do almoço. Ao sorrir em resposta a toda a preocupação, a angústia e ao terror comum, impingiu-lhes o silêncio. Quedaram, conformados. Aceitaram seu silêncio. Entenderam que precisava de tempo para digerir o momento. Estavam errados, claro. Tudo que não tinha, era tempo.

Deixou-os ali, saindo da sala. Assobiando “Pro dia nascer feliz”. Lembrou-se do sabor dos lábios da garota desconhecida, puxando-o pelo ombro e o beijando como há muito a esposa não fazia. “Eu amo essa música” — berrou ela. Abandonou-o zonzo, por aquele tesão súbito. Saiu pulando de novo. A água quente do banho não lavou seu sentimento de felicidade extrema. Ainda estava da mesma maneira, flutuando em sua paz.

Mirou-se nu no espelho. Murmurou um “obrigado”, olhando dentro do olho esquerdo. Amassou as folhas com os resultados de seus exames e jogou aquilo no lixo.

Vladimir Ferrari
Enviado por Vladimir Ferrari em 25/01/2023
Reeditado em 11/02/2023
Código do texto: T7703953
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