O Homem que Ofende Todo Mundo

- Você não sabe o que me aconteceu, hoje cedo.

- Você está me chamando de ignorante?

- Eu disse que você não sabe o que me aconteceu, hoje cedo.

- Por que você está me chamando de ignorante?!

- Não estou chamando você de ignorante.

- Está sim.

- Não estou, não. Eu disse que você não sabe...

- Se você diz que eu não sei, e se quem não sabe é ignorante, então você está me chamando de ignorante.

- Não estou. Eu apenas disse...

- Você me chamou de ignorante. Confesse.

- Você sabe o que me aconteceu, hoje cedo?

- Não. Não sei.

- Você não sabe porque você não estava, hoje cedo, onde eu estava, e ninguém para você contou o que me aconteceu.

- Que eu não sei o que aconteceu com você, hoje cedo, não sei, é verdade. Mas você não precisa me ofender.

- Não ofendi você.

- Você me chamou de ignorante.

- Não chamei você de ignorante. Comecei a contar para você o que me aconteceu, hoje cedo. É hábito nosso, sempre que desejamos contar para alguém uma novidade, que a pessoa para quem a contamos desconhece, ou acreditamos que a desconheça, uma novidade inusitada, um acontecimento incomum, ou um evento qualquer, que acreditamos interessante, mesmo que não o seja, prefaciarmos o que pensamos em contar com uma frase feita: "Você não sabe o que me aconteceu." Ora, é de...

- Abandone tal hábito, hábito arraigado no substrato coletivo da cultura linguística do povo discriminador e preconceituoso, que, sem o saber, e a papaguear os dízeres de seus avós e bisavós analfabetos, herdou de uma sociedade escravocrata, hábito que ofende a todos, em especial às minorias historicamente injustiçadas, criando, assim, um ambiente social hostil, que impede a convivência harmoniosa entre as pessoas em suas mútuas interrelações e conexões sociais.

- Que palavreado escalafobético! Galimatias sem propósito. Não entendi patavinas. Tudo bem. Excluo do meu relato o prefácio, e principio-o, contando: Vi, hoje cedo, uma capivara, que...

- Que indireta, hein?!

- Indireta?! Que indireta?!

- Você me disse que viu uma capivara.

- Pois... Se vi uma capivara!

- Você me disse, amigo, que você viu uma capivara porque eu tenho dois dentes grandes aqui na frente - e exibiu-lhos.

- Não. Eu não disse que vi uma capivara porque você tem dois dentes grandes aí na frente, dentes que, diga-se de passagem, eu não tinha visto até você os exibi-los para mim. Agora, que você me mostrou seus dentes grandes aí da frente, eu sei que você os tem. Eu disse, e digo, que vi uma capivara porque vi uma capivara. Ora, se vi uma capivara...

- É ofensiva a sua piada.

- Que piada?! Não estou contando uma piada. Estou contando o que me aconteceu, hoje cedo. E nada mais estou a contar. Não é uma piada o que...

- Por que você me disse que você viu uma capivara?

- Porque vi uma capivara.

- Por que você está me dizendo que você viu uma capivara?

- Para puxar conversa, apenas. E nada mais.

- Por que você puxou conversa comigo, e não com outra pessoa?! Há várias pessoas aqui. Por que você puxou conversa comigo?!

- Ora, é óbvio: porque você é a pessoa que está mais próxima de mim.

- Olha, amigão: não me tome por um tolo. Sei que tipo de gente você é: daquele tipo que vive de zombar da aparência alheia, de ridicularizar as pessoas porque elas são gordas, e porque elas são magras, porque elas são carecas, e porque elas são cabeludas, porque elas são altas, e porque elas são baixas, porque elas são peludas, porque elas são zarolhas, porque elas são barrigudas; enfim, gente que encontra defeitos físicos nas pessoas, qualquer um, e delas zomba, delas ridiculariza. E você, ao ver os dentes grandes que tenho aqui na frente - e exibiu-lhos -, selecionou-me para ser o alvo de suas zombarias, de suas chacotas, de suas piada de mal gosto, desrespeitosas, preconceituosas. Saiba, querido, que não admito piadas ofensivas.

- Não estou a contar para você uma piada, menos ainda uma que seja ofensiva. Se ao puxar um dedo de prosa com você eu não vira os seus dentes grandes aí da frente! Estou apenas a contar o que me aconteceu, hoje cedo, e nada mais. Nada mais estou a contar do que o que vi, hoje cedo. Eu disse, e digo, que vi, hoje cedo, uma capivara, no Bosque da Princesa...

- Você se faz de educado, e ofende-me desavergonhadamente.

- Quê?! Hoje cedo, no Bosque...

- Você está querendo me roubar a paciência, né, amigo?!

- Não. Não estou. Não sou um ladrão. Sou um cidadão pagador de impostos que está a contar uma história. Ora, estou apenas contando...

- Não se faça de sonso, cara. Confesse. Confesse. Não tenha vergonha de me dizer a verdade, a sua real intenção: zombar de mim, rir às minhas custas. Por fora, sua cara se mostra séria. E por dentro você está a rir de mim, eu sei. Você é um preconceituoso, um discriminador. Sujeito incivil, insociável. Você me disse que viu uma capivara porque tenho dois dentes grandes aqui na frente - e exibiu-lhos -, e agora diz que a viu no Bosque da Princesa. E onde eu moro?! No condomínio Bosque dos Eucaliptos.

- Eu não sabia...

- Você quer é rir de mim. Você quer é zombar de mim. Você é preconceituoso, discriminador. Você quer é se divertir às minhas custas. Você escolheu a pessoa errada...

- Estou a contar o que me aconteceu, hoje cedo, e nada mais.

- Você me ofende. Você está me contando uma piada ofensiva, de mal gosto, discriminadora, preconceituosa, eu sei. Não queira me enganar. Deixe de lero-lero. Sei qual é a sua intenção: zombar de mim, divertir-se às minhas custas, ridicularizar-me. Você quer me tirar do sério, e eu sei com qual propósito: o de constranger-me na frente de todos, para humilhar-me. Você é um incivil, um bárbaro. Você é desrespeitoso, mal-educado.

- Eu disse que vi, no Bosque da Princesa, uma capivara... Na verdade, três: uma, grande, e pequenas as outras duas. Estas, filhotes daquela, certamente.

- E você insiste em contar-me a piada discriminadora, preconceituosa, para me ofender.

- Não estou a contar uma piada; e tampouco é minha intenção ofender você. Estou a relatar o que me aconteceu, hoje de manhã, no Bosque da Princesa.

- Não desconverse. Não simule educação, que você não tem. Você quer me ofender. Tenho certeza que você, ao acordar, hoje, pensou, e antes de escovar os dentes: "Quem irei ofender, hoje? A quem contarei uma piada ofensiva? Ao meu pai?! Não. À minha mãe?! Não. Ao meu vizinho?! Não. Ao meu irnão?! Não. À minha esposa?! Não. À minha amante?! Não. Ao meu chefe?! Não. Ao meu cachorro?! Não. Quem ofenderei, hoje? Quem?! A quem irei contar uma piada ofensiva?! Já sei. Escolherei, aleatoriamente, uma pessoa qualquer que me cruzar o caminho, e para ela a contarei, ofendendo-a." Estes os seus pensamentos, hoje, assim que você acordou. E há poucos minutos você me viu, e disse consigo mesmo: "Achei quem eu queria. Ele tem cara de tolo. É um pateta. Vou me divertir com ele." E aproximou-se de mim, e, insinuante, como quem não quer nada, abordou-me, e com simpatia fingida, emprestando-se ares de pessoa educada, pôs-se a contar-me, de mim zombando, e ofendendo-me, uma piada grosseira, ridícula, ofensiva. Comigo não, violão! Aceite um conselho, conselho de amigo: Não conclua a piada. Rejeite o conselho, que é de um amigo, e eu terei de providenciar os serviços de um advogado. E iremos, e não é o meu desejo, resolver o caso, num tribunal, diante de um juiz e dos jurados. É de bom alvitre, para você, fechar a matraca.

- Não estou...

- Não prossiga, por favor. Não prossiga, por gentileza. Não me tome por um tolo. Não nasci ontem, sabia?! Você me dirige a palavra, fala-me de uma capivara, porque tenho dois dentes grandes aqui na frente - e exibe-lhos -, e diz que a viu no Bosque da Princesa, porque eu moro no condomínio Bosque dos Eucaliptos, e, por fim, afirma que a capivara tem dois filhotes, porque eu tenho dois filhos. Você associa os personagens e os locais da sua história comigo e meus filhos e o lugar onde moro e ousa me dizer, com a maior cara-de-pau que já se viu, que não está a zombar de mim e que não está a me ofender, a me faltar com o respeito! Quantas demãos de óleo de peroba você passou na sua cara lavada, hoje cedo?! Diga-me quantas. Duas?! Três?! Dez?! Cinquenta?! Quantas?! Quantas?! Por quem você me toma?! Não abuse da sorte, amigo! Quem avisa amigo é!

- Não se exalte.

- Não estou exaltado!

- Nada mais fiz, desde que a você me dirigi, do que contar que, hoje cedo, no Bosque da Princesa, vi uma família de capivaras, mãe,e filhos, dois, à margem do Rio Paraíba...

- Por que você diz que foi à margem do Rio Paraíba que você viu as capivaras?!

- Ora, porque foi à margem do Rio Paraíba que vi as capivaras.

- E você não podia me dizer que as viu à margem de outro rio, do Rio São Francisco, por exemplo, ou do Rio Uruguai, ou do Rio Paraguai?!

- Não. Não podia, não.

- Por que não?!

- Porque o Bosque da Princesa está à margem do Rio Paraíba. E eu estava, quando vi as capivaras, no Bosque da Princesa; então...

- Então você é um paspalho, um salafrário, um cretino, um ordinário de marca maior! Você sabe onde eu nasci, sabe?! Em João Pessoa! João Pessoa! Ouviu?! João Pessoa, capital da Paraíba! Você me ofende! Insulta-me! Você odeia os nordestinos! Você odeia os paraibanos! Ei?! Aonde você vai?! Volte aqui?! Aonde você vai?! Não fuja, não! Aonde você vai?! Volte aqui?! Vou telefonar para a polícia! Não fuja, não! Volte aqui! Aonde você vai?! Volte aqui! Volte aqui!

Ilustre Desconhecido
Enviado por Ilustre Desconhecido em 05/02/2023
Código do texto: T7711772
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