A GAROTA MAIS FORTE DA ESCOLA

Anos 80. Eu tinha por volta de 15, 16 anos. Estudante de ensino médio. Não era das mais bonitas da classe. Longe de ser. Me achava magra demais e, nos dias mais frios, eu aproveitava para vestir duas calças e ficar mais cheiinha.

Antes se meu problema fosse apenas pernas finas ou falta de beleza. Eu já estava acostumada com aquilo. Resignada. O que me tirava, literalmente, o sono, é que naquele ano eu fora parar numa turma nova na escola. As poucas amigas que eu fizera estavam em outra sala. Sabe-se lá o motivo, eu agora tinha outros colegas. Eu não consegui me adaptar àquela nova configuração. Não demorou para o bullying começar num tempo em que esta palavra não existia e os problemas se resolviam na escola mesmo, sem precisar vir pai e mãe à direção exigir providências.

Lá em casa ninguém sabia o que eu passava naquela escola dos infernos. O bullying vinha de um grupo de garotos da minha sala. Eles, do nada, resolveram pegar no meu pé na segunda semana de aula. Para piorar a situação, não consegui criar vínculo com nenhuma das minhas novas colegas. Elas não iam com a minha cara, mas não me maltratavam. Me excluíam sempre que podiam. Os trabalhos em grupo eu fazia com outro grupo de meninos que, por sua vez, eram excluídos também pelos outros, os que faziam maldades comigo.

Então me apaixonei pelo Ricardo. Eu já o conhecia de outros anos letivos, mas nunca estudamos na mesma turma. E nem nunca Ricardo olhou para minha cara. Para o que achei que era sorte minha, ele foi reprovado e naquele ano foi parar na minha sala. Oba, um sinal dos deuses e talvez a gente começasse a ter um lance, sei lá. Me enganei, redondamente. Logo, Ricardo fez amizade com os meninos que faziam bullying comigo. E comecei a ser vítima dele também.

Quando isto aconteceu, lembro que chorei escondido enquanto tomava banho. Era muito azar. O cara nem sabia que eu existia. E agora me dizia coisas horríveis sem eu nunca ter feito nada para ele. Era inacreditável o que acontecia comigo naquela sala de aula. Eu me defendia como podia, mas era tímida demais para me impor. Algumas vezes, uma ou outra garota tentava intervir para eles pararem. No outro dia, entretanto, começava tudo outra vez.

Várias vezes pensei em contar tudo para meu irmão gêmeo (que estudava em outra escola, minha mãe queria que fôssemos independentes um do outro), ou para meu irmão mais velho e também para papai. Travei. Pura vergonha. Hoje me arrependo de não ter pedido ajuda. Não sei como disfarcei meu desespero e angústia naquela época. Para minha família tudo estava bem. Nem desconfiavam do meu inferno particular.

*

No ambiente escolar todos estavam em polvorosa. Em semanas haveria o Baile da Rainha. Cada turma escolheria duas candidatas para desfilar e disputar a cobiçada faixa. Minha mãe, anos antes, tinha sido a eleita naquela mesma instituição. A foto do Baile eu guardava comigo e, embora fôssemos parecidas, eu nunca tivera um décimo da beleza dela. Na minha sala de aula havia duas meninas muito bonitas, a Laura e a Cecília. Era certo que ambas seriam as escolhidas da turma. Eu, pelo menos, votaria em ambas, apesar de nenhuma delas me dar a mínima.

A votação aconteceu em um dia chuvoso. Não daria para ter a aula de Educação Física no pátio, então a professora teve a incumbência de organizar a escolha. Até aí tudo bem. A conversa seguia animada na sala de aula. A única silenciosa era eu, sem ninguém para trocar uma ideia ou uma risada. De repente, comecei a escutar um cochicho dos bostas que pegavam no meu pé. Eles falavam alguma coisa entre eles, riam e me olhavam. E riam outra vez. Comecei a ficar tensa. O que estavam tramando, aqueles desgraçados? Logo me dei conta. Estavam votando em mim. Eles haviam me posto um apelido. Meio grama, devido à minha magreza. O pavor tomou conta. Toda a sala pôs o nome das candidatas em pedaços de papel distribuídos pela professora. No meu pânico, devolvi o papel em branco. Passei a suar só de imaginar que, quando os papéis fossem abertos e começassem a contabilizar os votos, o nome atribuído a mim, meio grama, seria revelado. Percebi que Ricardo me encarava, sorrindo, maldoso. Me encolhi, acuada.

Nunca desejei tanto que um buraco se abrisse e eu caísse dentro.

E a conferência dos votos iniciou.

*

Hoje lembro daquela tarde chuvosa como um dos piores dias da minha vida escolar. Sim, os meninos votaram em mim. Pelo menos, fizeram o favor de colocar meu nome verdadeiro na “cédula” de votação. Graças aos votos deles, eu fiquei em segundo lugar, ocupando a vaga que seria de Cecília, naturalmente. Eu e Laura fomos as escolhidas. Nem acreditei que aquilo estava acontecendo. Meu sonho secreto sempre havia sido disputar um título de beleza, talvez pelo passado da minha mãe. Agora, às avessas, eu realizaria meu sonho. Não iria ficar nem entre as três primeiras colocadas, mas não importava. Mal podia esperar para chegar em casa e contar a novidade. O Baile da Rainha seria em três semanas. E eu faria de tudo para dar o meu melhor.

*

Não é exagero afirmar que minha família ficou mais empolgada que eu. Logo se formou uma força-tarefa para me preparar para o Grande Dia. Mamãe chamou minhas tias e primas para o Baile. Vovó tratou de confeccionar um vestido muito semelhante a que minha mãe usou no dia da sua coroação. Era muita função em torno de mim. Confesso que até me assustei. Eu não seria sequer finalista mesmo com todo aquele aparato. Depois relaxei e deixei nas mãos de Deus.

Na sala de aula eu continuava sendo vítima de bullying. As amigas da Cecília não cansavam de enviar indiretas sobre a minha escolha. Toda vez que eu olhava para o lado e, sem querer, dava de cara com o Ricardo, ele me fazia uma careta. Nossa, aquilo estava ficando pesado. Lentamente, fui tomando consciência que deveria tomar alguma atitude antes que piorasse. Como eu tinha muita coisa na cabeça, deixei para resolver, de vez, a situação, depois do Baile.

E a grande noite, enfim, chegou.

*

Era um sábado de meia estação. Um clima gostoso, perfeito para o vestido lindo que minha vó fez em tempo recorde. O Baile seria à noite e à tarde minhas primas e tias invadiram minha casa. Me maquiaram, ondularam meus cabelos e a tia Karen, professora de Educação Física, me passou uma série de agachamentos para minhas coxas ficarem delineadas. Não adiantou nada.

O evento teria lugar no ginásio da escola. Eu, como candidata, deveria chegar duas horas antes. Meu gêmeo me levou e já ficou por lá, esperando o restante da parentada chegar. Me instalei numa sala com as outras garotas. Num canto. Elas estavam bonitas. Se maquiavam, arrumavam o cabelo uma das outras. Nenhuma se dava ao trabalho de falar comigo. Me senti deslocada e um pouco patinho feio, embora hoje, olhando para aquelas fotos antigas, eu estivesse muito bem. Tentei me acalmar. Não roí as unhas. Imaginei minha família toda em peso aguardando a minha passagem. Não podia decepcioná-los.

Uma professora apareceu na sala barulhenta pelas vozes alegres das meninas e nos orientou. Entraríamos todas juntas e depois, individualmente. Eu estava mais feliz que nervosa. Quando fizemos o desfile em grupo, minha torcida era a mais ruidosa. O grupo dos guris que praticavam bullying em mim estava bem perto do palco, algo que me desagradou. Eu seria a quinta menina a entrar sozinha. Teria um palco inteiro só pra mim como nunca havia tido até então. Rezei segundos antes de ser a minha vez. Esperei o sinal da professora e avancei, firme e sorridente, pelo palco. Recebi aplausos. Mas quando passei bem em frente dos meninos, ouvi nitidamente a voz do Ricardo, clara e cristalina, ecoando por todo o ginásio.

一 Aê, dragão!

Nitidamente, se instalou um mal-estar na plateia. Certo silêncio se formou por alguns segundos. Meu estômago doeu e tive vontade de chorar. Continuei sorrindo, envergonhada, sem enxergar mais ninguém. Imaginei meu pai, irmãos e primos tentando identificar o cretino para tomar satisfação depois. Era certo que eles não deixariam barato.

Porém, decidi que quem faria aquilo seria eu.

Terminei o desfile com a mesma cara que entrei, sorrindo com todos meus dentes. Percebi que as candidatas também estavam constrangidas. Desci do palco, avancei até onde Ricardo estava e parei a sua frente. Ele era mais alto, mas não o temi. Ficamos nos encarando por cinco segundos. Ricardo era puro deboche e desdém.

Foram dois diretos de esquerda. Quebrei o nariz dele, fissurei o osso de um dedo meu. Saí de alma lavada. Fui aplaudida outra vez, desta vez mais forte. Talvez, por desagravo, os jurados decidiram dar o título de Rainha para mim.

E nunca mais sofri bullying na minha vida.

Diga não ao bullying. Peça ajuda. Você não precisa lutar sozinho.

Patrícia da Fonseca
Enviado por Patrícia da Fonseca em 12/03/2023
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